Via Trivela
No dia 3 de maio de 2022, o futebol do Clube de Regatas do Flamengo comemora 110 anos de existência. Ao longo de todo esse tempo, muitos críticos associaram as cores do clube ao autoritarismo. Entre os que compartilham dessa visão há dos mais intolerantes à cultura popular, que identificam o time automaticamente com a alienação, até os que se concentram nos dirigentes mais ligados à extrema direita que ocuparam cargos centrais ao longo da história.
A dedicação à modalidade representa um ponto de inflexão, que culmina na popularização de suas cores até que a sua torcida seja considerada, ainda no século XX, a maior do Brasil. A mitologia sustenta que os treinos abertos na Praia do Russel, à beira da Baía de Guanabara, foram um fator determinante para que a legião rubro-negra se avolumasse. As apresentações concentravam curiosos, que teriam se convertido depois em torcedores.
O atual alinhamento atávico da cúpula do Flamengo ao bolsonarismo é inegável. A discussão sobre a nomeação do presidente Rodolfo Landim para o conselho da Petrobras é o mais recente sinal da união que atravessou o negacionismo perante as mortes provocadas pelo coronavírus e as conclamações a golpes militares durante todo o mandato de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto. Até dependências do clube foram cedidas a ações para fortalecer a imagem do político.
O diretor de futebol, Marcos Braz, foi eleito para a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro pelo mesmo Partido Liberal (PL) que vai capitanear a candidatura do atual presidente da República à reeleição. Mais próximo ao cotidiano dos atletas que os demais dirigentes da primeira linha, conhecidos por serem executivos de empresas, o parlamentar é um rosto familiar para os torcedores. Trata-se de uma figura presente constantemente em entrevistas e coletivas.
Todas essas evidências não confirmam a hipótese de que o Flamengo é intrinsecamente conservador ou reacionário. Pelo contrário, reforçam que há uma disputa em torno do clube: os torcedores, as escalações históricas, as trajetórias dos ídolos, a relação indissociável com a música popular. Os elementos que o compõem estão em jogo e se setores da extrema direita buscam se apropriar desses traços é por reconhecê-los como perigosamente subversivos.
A história da política do clube é conflituosa. Incorpora presidentes com inclinações ao getulismo, a exemplo de José Bastos Padilha. Passa por representantes da União Democrática Nacional (UDN), partido que ofereceu sustentação civil à investida antidemocrática que derrubou João Goulart. O caso mais significativo nesse sentido é o de Veiga Brito, que também fez carreira parlamentar. E chega nas contradições da abertura com a Frente Ampla Pelo Flamengo (FAF).
O nome era provocador para a época. Fazia alusão à união dos presidenciáveis Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e do próprio Jango contra a ditadura. A chapa, formada ainda durante o regime, tinha o apoio de empresários e lançou Márcio Braga à presidência. Eleito, o dirigente se fortaleceria para vida legislativa em Brasília. Tomou a direção do Centro-Oeste quando conseguiu uma cadeira de deputado federal pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
O embate não se resume ao panorama partidário. A restrita política institucional no país, que ao longo de boa parte do século XX impediu, por exemplo, a participação de analfabetos nos pleitos, não seria suficiente para dar conta da real dimensão dos confrontos simbólicos. Como em todos os outros grandes clubes do Brasil, no Flamengo a mobilização de multidões deu origem a expressões democráticas. Por seu tamanho, as manifestações foram significativas.
Os pouco conhecidos episódios da Flanistia e da Fla Diretas oferecem indícios acerca disso. O fato de o clube ter recebido Afonsinho, o primeiro jogador a conseguir o Passe Livre depois de brigar na justiça por seus direitos, também. Relatos esquecidos fortalecem os aspectos mais rebeldes dos elementos que compõem o clube. Reforçam, inclusive, que disputas políticas sobre a memória estão em curso. O jogo não está decidido.
A resignação perante a versão de que o Flamengo deve ser prontamente conectado à extrema direita revela proporções monumentais de autoindulgência. Seja internamente – em votações na Gávea ou em debates entre conselheiros –, seja externamente. Registros históricos e fatos contemporâneos, como as vertentes antifascistas e a constante evocação da lembrança da vereadora rubro-negra Marielle Franco, assassinada em 2018, exclamam contra essa associação.