Pular para o conteúdo
Os Provos Holandeses Inventaram a Contracultura
Cultura e Esporte

Os Provos Holandeses Inventaram a Contracultura

Uma entrevista com Matteo Guarnaccia sobre a cena da contracultura de Amsterdam nos anos 1960.

Por

Tempo de leitura: 14 minutos.

Via Vice

Esta é a história de um grupo de malucos que reinvidicou as ruas de Amsterdam para colocar em prática os planos utópicos das vanguardas libertárias do século 20. Eles eram anarquistas, feiticeiros, artistas, desordeiros, ex-situacionistas e visionários em geral. Eles inventaram o espírito de sua época, transformando a capital holandesa na Meca da juventude dos anos 1960/70. Eles colocaram em prática ideias tão pioneiras e impactantes que anteciparam outras importantes manifestações póstumas, como os Merry Pranksters de Ken Kesey, os Diggers da Haight-Ashbury e os Yippies de Abbie Hoffman. Tudo aconteceu muito rápido: os primeiros ataques do movimento Provos às estruturas da sociedade tradicional europeia começaram a partir de julho de 1965, e suas ações de contestação se esgotaram em maio de 1967.PUBLICIDADE

O ponto de partida pode ser considerado o lançamento da revista que deu nome ao levante. Editada por Roel Van Duijn, um ideólogo bakuninista, e Rob Stolk, operário e ativista pacifista, a revista mensal Provo foi lançada no contexto das cerimônias promovidas pelo profeta antifumo Robert Jasper Grootveld, que logo se mostrou interessado nas atividades daqueles frequentadores. As cerimônias de Grootveld eram happenings coletivos num lugar que ele chamava de K-Temple, a Igreja da Dependência Consciente da Nicotina. Lá, ele celebrava encontros loucos, gincanas mágicas, transes selvagens. Coisas fora do comum eram comuns.

Ao lado de outro personagem-chave, Bart Huges, Grootveld ficou famoso com vários happenings, como o Marihu Project. Eles espalhavam centenas de maços cheios de baseado pela cidade: eles eram enfiados em máquinas automáticas, vendidos ou presenteados. Amsterdam passou a ser considerada um centro mágico pelos Provos; além disso, no seu coração, o Spui, tem a estátua de um menino chamado Liervedja – que havia sido rotulado de “consumidor viciado” –, em torno do qual rolavam uns rituais terapêuticos delirantes e em grupo, com jogos, danças e cantos. Os Provos ganharam as manchetes pela criação de uma série de “planos brancos” embasados por manifestos que propunham soluções para problemas sociais e ambientais.

Tudo vinha sempre acompanhado de alguma zombaria ou provocação às autoridades. O Plano das Bicicletas Brancas é, sem dúvida, o mais icônico. Eles criticaram os automóveis, que chamavam de “caixas de ostentação de status”, e anunciaram num panfleto que bicicletas brancas seriam espalhadas pela cidade para uso geral. “Basta do asfáltico terror da classe média motorizada! Todo dia, as massas oferecem novas vítimas em sacrifício ao último patrão a quem se dobraram: a auto-ridade. O sufocante monóxido de carbono é seu incenso. A visão de milhares de automóveis infecta ruas e canais”, dizia um trecho do comunicado.

Mas a reputação internacional do Provos veio com a esculhambação feita à cerimônia de casamento da Princesa Beatrix e do Príncipe Claus von Amsburg com bombas de fumaça. O lance é que a história e as ideias do Provos são cheias de pormenores. Esse movimento fez do protesto, poesia. E só um cara se propôs e conseguiu produzir um balanço factual bem amarrado e legível sobre o tema, o italiano Matteo Guarnaccia. A edição brasileira de sua apurada radiografia foi lançada originalmente por aqui em 2001 pela Conrad dentro da coleção Baderna. Agora, o livro está de volta às prateleiras via editora Veneta. O primeiro título da segunda encarnação da Baderna foi A Revoada dos Galinhas Verdes, de Fulvio Abramo, e agora é a vez de Provos – Amsterdam e o Nascimento da Contracultura chegar em nova edição.

Guarnaccia, artista e escritor, é um dos principais nomes da psicodelia europeia, autor de vários estudos compilados a respeito de, claro, arte e psicodelia, mas também de moda, skate e outros movimentos sociais. Aproveitamos o relançamento do título no Brasil para conversar com ele acerca de alguns pontos compreendidos entre as capas.

VICE: Então, como você se envolveu com a contracultura e a psicodelia em primeiro lugar? e como isso te levou a querer pesquisar e documentar a história do Provos?
Matteo Guarnaccia: Meu envolvimento com esse cenário foi natural. Desde criança, eu já sabia que o mundo era mais interessante, expansivo e mágico do que a versão esterilizada promovida pela igreja, pela escola, pelos políticos e pela publicidade. Como artista e ser humano, tudo o que eu queria era Caos, Espaço e Aventuras. Comecei a explorar outras opções em que arte e vida estivessem interligadas, daí encontrei algo que se encaixava… era o rock’n’roll e a vida comunitária, onde encontravam-se o amor verdadeiro e a poesia. Viajei bastante pegando carona: Afeganistão, Ibiza e, é claro, Amsterdam. Nos anos 1970, aquele era um lugar muito especial para se viver, ainda livre da pecha que lhe imprimiu o estúpido clichê de “cidade transgressiva”. Era um enclave maluco e pacífico entre o Silk Road e a Via Láctea, um laboratório social para sonhadores e dissidentes. Eu vivi lá e comecei a editar minha revista psicodélica, Insekten Sekte. O título foi inspirado por umas visões de crianças acampadas por todos os lados, saindo de seus sacos de dormir. Elas pareciam uma multidão de insetos emergindo de seu monocromático amontoado. Depois de muitos anos, eu fui entrevistado sobre minha bagagem artística por um jornalista da revista Vogue; e foi engraçado, porque, no processo, ele percebeu que tudo o que sabia a respeito de contracultura se baseava em preconceitos baratos. Ele era um sujeito nobre, rendeu-se, pediu para que eu mesmo escrevesse o artigo. Minha carreira como escritor começou assim. Desde então, na minha vida, a escrita caminha em paralelo à pintura. Era final dos anos 80, eu divagava sobre Amsterdam, tentando compreender o que fizera aquela cidade ser tão diferente. Era o único lugar que tinha resistido aos yuppies, à [era] Disco e aos fashionistas. Estudei sua história, sua cultura e conheci o Provos: foi estranho, porque eles eram parte da minha geração. Eu era mais jovem do que eles, mas eles eram como irmãos mais velhos. Pensei em como incrível e grandiosa era a história da contracultura, com diferentes frutos pipocando em diferentes lugares. Quando você vive uma experiência, você não tem tempo para investigar o que está fazendo; então, vem o momento de elaborar e passar a informação para outros humanos… e o Provos foi perfeito, uma espécie de conto de fadas sobre um bando (eles eram uma dúzia) de jovens rebeldes vagueando por um reinado decadente e se opondo a todas as regras…

Quanto tempo você levou para terminar o livro? Foi difícil conseguir juntar todo o material?
Eu trabalhei uns dois anos entre Milão e Amsterdam, Londres e Paris. Foi uma tarefa muito difícil – primeiro, porque eu tive de bancar a pesquisa sozinho: a editora original era muito pequena, mas eu ainda tinha meus contatos por lá e isso foi de alguma utilidade. Eu acho que esse fator humano é evidente no livro. Fora que todas as fontes eram em holandês. Eu fui sortudo em ter o prazer de conversar com alguns ex-Provos e com pessoas que participaram de seus happenings. Todos muito solícitos (muitos ainda estavam envolvidos com questões sociais, seja como artistas ou ativistas), desejosos de compartilhar suas memórias, fotos e relíquias. Uma pena que agora muitos deles já se foram, mas jamais serão esquecidos. Faz parte do meu trabalho levar adiante suas palavras, para que possam continuar ressoando. Além disso, também mergulhei em muitos jornais de massa e undergroung, documentários e filmes da época (ingleses, belgas, franceses, norte-americanos, italianos) pertencentes a diferentes coleções. Eu devo gratidão especial ao Amsterdam Institute of Social Science (IISG), uma arca do tesouro de raros documentos.

O Provos antecipou outras expressões que vieram mais tarde, mas que, ainda nos dias de hoje, têm mais cobertura do que eles tiveram, sob a forma de documentários, filmes, livros, como os Merry Pranksters, os Diggers, os Yippies, hippies e punks. Por que isso? Só porque eles não tinham o rock’n’roll envolvido no processo?
Basicamente, nós continuamos vivendo num mundo dominado pela economia anglo-americana e pela força militar; então, é perfeitamente compreensível que tudo o que veio desse âmbito – até acontecimentos contraculturais pequenos – tenha ganhado uma cobertura muito mais intensa (mesmo quando não era para tanto). A Beat Generation bebeu na fonte do existencialismo e do estilo de vida Rive Gauche, enquanto os Diggers e Yippies tiraram um monte de ideias do Provos. Egresso de uma linhagem de vanguarda que incluía o Dadaísmo e o Surrealismo, assim como o Anarquismo, o Provos estava agindo num país minúsculo, dono de uma língua pouco difundida e sem as estrelas do rock para espalhar suas ideias. Mas precisamos ter em mente que a contracultura era como fogo no palheiro. Ela se espalhou por todos os cantos – até no Brasil, com a Tropicália, e na Alemanha, com o Kraut Rock, apenas para mencionar alguns exemplos. O Provos era diferente, porque eles queriam fazer parte da sociedade, e não viver à margem dela: eles recusavam a ideia de ser um culto recluso.

Hoje em dia, podemos notar que os jovens militantes andam pouco criativos quando se trata de reclamar as ruas e passar suas ideias adiante. Já o pessoal do Provos sempre foi muito criativo e influente na forma de se expressar, como em seus “planos brancos”, e também nos happenings e em textos, por meio de seus manifestos tão bem concebidos. Como você acha que as ações e ideias do Provos poderiam inspirar os movimentos atuais?
Substancialmente, ensina a História que o que faz a diferença é o inesperado. Os guardiões do castelo estão esperando pelo próximo assalto olhando sempre para a mesma direção de onde veio o anterior. A beleza da contestação é sempre encontrar um novo caminho/atalho para adentrar o sistema/castelo. É como o Proteus: ninguém sabe a forma que ele terá no futuro. Não sejamos apressados: o próximo ataque virá, como de costume, sem bater à porta.

É correto dizer que, para os situacionistas, o Provos era uma piada? Qual foi exatamente a sua crítica sobre eles? E qual é a percepção que você tem a respeito?
Os situacionistas… eu amo esses caras, eles viram o futuro (e não era uma visão bonita), mas eles estavam ocupados demais em demonizar uns aos outros; eram muito cínicos e intelectualizados para compreender que aquele grupo de maltrapilhos brincando nas ruas estava tentando – sem saber – colocar em prática as visões deles próprios: L’imagination au pouvoir (et contrele pouvoir). [nota do repórter: “A imaginação ao poder (e contra o poder)” era um dos mais famosos ‘slogans’ do situacionismo].

A magia e a mística parecem desempenhar um papel importante em algumas ações do Provos, como podemos dizer por conta de alguns happenings, mas, principalmente, pelas sessões promovidas por Robert Jasper Grootveld. O que todo esse esforço teatral tinha a ver com a promoção de uma sociedade melhor?
Eles viviam numa sociedade rigidamente controlada, estanque e sem o mínimo de senso de humor. Era uma armadura de aço ainda despreparada para ser atacada por argumentos sólidos e algum deboche. A magia e a loucura fizeram milagres. Dê uma olhada nas fotos da época: a divisão antropológica entre as pessoas comuns e os happeners era incrível. Um mundo mudo em preto e branco colidindo-se com um barulhento arco-íris.

O Provos nunca quis uma revolução, porque, em primeiro lugar, seus membros não pareciam acreditar que venceriam a batalha, certo? Mesmo assim, eles se divertiam enquanto provocavam as autoridades e a tradição. Há uma lição filosófica mais profunda que podemos aprender com isso?
Era uma nova maneira de tentar conduzir as coisas a uma revolução. Um jogo travesso. Como nos contos folclóricos dos nativos norte-americanos, em que o coiote age furtivamente, provocando e questionando a autoridade. Um jeito de pontuar a diferença entre autoridade e autoritarismo. De tentar tirar da tradição as ferramentas de que você precisa para se expressar, manter as coisas fluindo, experimentar todos os caminhos que possuam um coração (como Castaneda alertou). Dando certo ou não, ao menos, ao longo do processo, você terá sua consciência ampliada e vai se divertir bastante.

Será que o Marihu Project desempenhou um papel importante para toda a cultura canábica que, mais tarde, teria lugar em Amsterdam? Quero dizer, essa campanha pode ser considerada o próprio início da discussão sobre a regulamentação do consumo na cidade?
Aquilo foi uma travessura artística, uma performance perfeita para mostrar mais uma vez que o rei está nu. A questão era a liberdade pessoal, a estupidez das leis em geral – e não só a proibição da maconha. Eles fumavam, plantavam sementes, davam risada; porém, depois disso tudo, eles não estavam felizes com o novo mercado/consumismo focado no baseado – um novo código de aceitação social –, que produzia um “consumidor passivo” não muito diferente do fumante de tabaco ridicularizado no happening de Grootveld.

Toda vez que alguém se mete a redigir um artigo apresentando o Provos para os leitores, é um clichê começar mencionando a simbologia das bicicletas brancas. Essa era realmente a causa mais importante dos caras? Ou todos esses autores estão errando o alvo?
Reduzir a rebeldia provo ao plano das bicicletas brancas (mesmo que tenha sido genial) faz com que eles se pareçam com um grupo de escoteiros, uma frente ecologista qualquer: na verdade, eles eram jovens bagunceiros, universitários espertos promovendo ritos subversivos (muitos dos quais inventados por eles próprios). Mesmo dentro de seu pragmatismo, eles queriam uma sociedade anarquista, nem mais nem menos. Não se tratava apenas de resolver o problema da mobilidade urbana.

Existe ainda uma contracultura rolando neste mundo? Quero dizer, da anarquia à arte de rua, passando pelo punk rock, a imprensa alternativa e o skate, tudo foi absorvido pelo espetáculo da vida cotidiana…
Aquela mesma noção de contracultura, atualmente, não faz mais sentido. O problema é que nós estamos perdendo, dia a dia, pedaço por pedaço, a cultura propriamente dita. Você não pode ser excêntrico quando não existe mais um centro. Mesmo nos anos 1960, a contracultura perdera o foco: nós deveríamos ter defendido a cultura, o significado das palavras e dos gestos. Deveríamos ter trabalhado nas diferenças, rejeitando a ideia – muito útil para o mercado global – de que toda experiência é intercambiável, tem valor igualitário, não existindo hierarquia de pensamentos. O mercado, o consumismo, estão constantemente suprimindo a cultura, porque a cultura (e o amor) é o que nos torna livres e responsáveis.

O início da história do Provos é marcada pelo momento em que as ideias de Van Duijn se convergem às ideias de Grootveld, certo? Mas há um capítulo específico ou evento que marca o fim do jogo? É que eu interpreto a morte do Provos como algo intencional, e não algo que se deu progressivamente…
Você está certo. O Provos nasceu do encontro entre o velho ativismo (poder para o povo) somado a uma nova forma de erudição xamanista. Eles vieram, viram, venceram (especialmente os corações das pessoas comuns). Então, os ideólogos do Provos se cansam de trabalhar para a sociedade do espetáculo. Eles não mais se sentem estimulados. Eles sentem que estão se tornando, mais e mais, alvo de piada: uma marca, um símbolo, como as minissaias e as peruquinhas dos Beatles. Daí que eles tinham consciência da situação e decidiram fechar o capítulo, colocar um ponto final na história. De qualquer modo, esse sempre foi o destino das vanguardas: brotar, florescer, dar frutos (muitos deles suculentos e proibidos) e, então, entrar em decomposição. Quem será o próximo?

Você também pode se interessar por