Em tom de conversa, o jovem pesquisador Guilherme Pontes tinha a árdua tarefa de, em pouco mais de trinta minutos, resumir a história de inúmeros coletivos com diferentes atuações. “Os coletivos têm várias frentes de batalha”, explica. “Mas, eles abordam basicamente tudo: racismo, homofobia, elitização do futebol etc.” A sua voz calma e linguagem informal contrastavam com o grande conhecimento que Guilherme apresentava sobre o assunto. Em um quarto com paredes brancas e uma janela semi-aberta, dissertava, tranquilamente, sobre o tema, como se falasse sobre o que havia jantado na noite anterior.
Guilherme explicou que, no Brasil, os coletivos de torcedores identificados com a esquerda são relativamente novos. Eles surgiram um pouco depois das manifestações de 2013, em um contexto de ascensão da direita, com uma polarização e um caos político instaurados. “Fazem de tudo para barrar o posicionamento político nos estádios.”, explicou.
Se barram nos estádios, a rua torna-se o espaço de protesto.
Uma imagem marcou quem lia as notícias sobre o Brasil em junho de 2020. Muitos torcedores, em sua maioria corinthianos, tomaram a Avenida Paulista, em meio à pandemia da COVID-19. Eles protestavam contra o governo do presidente Jair Bolsonaro. Vestidos de preto, carregavam uma faixa com a frase “somos pela democracia”. Nesse momento, surge na mídia um grupo que estava “escondido”, que não era retratado: os coletivos de torcedores antifascistas. Para os leigos no assunto foi um choque. Afinal, quem esperaria uma resistência à crescente extrema-direita vindo do ambiente do futebol, onde há tanta misoginia, racismo e homofobia?
REAÇÃO AOS FASCISTAS
Os coletivos antifascistas surgem como uma reação a outro movimento: a ascensão da extrema-direita. Segundo dados de uma pesquisa realizada pela pesquisadora Adriana Dias, da Unicamp, somente entre 2019 e 2021, os grupos neonazistas no Brasil aumentaram em 258%. A pesquisa afirma ainda que há mais de 500 cédulas em cinco regiões do País. Nesse contexto, os coletivos surgem, usando o futebol como meio para contra-atacar essa ascensão. “O futebol é o meio de trazer toda a sociedade para a luta do povo na reconquista de seu poder”, afirma Celia Medina, membro do Coletivo da Democracia Corinthiana.
Fora do Brasil, o contexto é diferente. Na Itália, por exemplo, as torcidas organizadas ocuparam o espaço que os coletivos têm atualmente aqui, já no século passado – para direita ou para a esquerda.
Em nome do Bloco Tricolor Antifascista, Lara Luxemburgo e Eric Cantona (pseudônimos usados por eles para preservar suas privacidades) explicaram as diferenças da atuação política dos coletivos no Brasil em relação aos da Europa. “Na Europa os coletivos antifascistas são mais organizados, vivem uma realidade diferente do que aqui no Brasil, inseridos em contextos ligados às atividades políticas, sociais e culturais mais diversificadas e enraizadas em culturas de rua, de squats, de centros culturais, de movimentos de moradias populares e de arquibancadas.”, afirmaram.
No Brasil, com inúmeros problemas sociais e o surgimento de muitos coletivos, cada um acabou atuando mais em diferentes áreas. Como explica novamente Guilherme Pontes, enquanto alguns coletivos acabaram por abordar temas mais sensíveis à sociedade – como homofobia – outros lutaram por temas mais populares. Esses acabaram recebendo mais apoio do torcedor comum e, às vezes, até mesmo de organizadas. Essa relação com as torcidas uniformizadas e com o fazer política, porém, acaba mudando muito de time para time. Como há muitos coletivos em muitos clubes diferentes, o Contraponto optou por escolher se aprofundar em apenas dois deles: O Corinthians e o Palmeiras.
PALMEIRAS
Ao mesmo tempo que tem uma história fortemente vinculada com a esquerda – como quando, em 1945, o time realizou uma partida contra o Corinthians com a intenção de angariar fundos para o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) -, o Palmeiras da Barra Funda já flertou diversas vezes com a extrema-direita.
Em 2018, o então presidente do Palmeiras, Maurício Galiotte, convidou o então deputado federal Jair Bolsonaro para assistir o jogo que consagrou o clube como campeão do campeonato brasileiro daquele ano. O resultado? Bolsonaro levantou a taça com um Alianz Parque dividido: metade vaiava e metade aplaudia. Não à toa, a relação entre o clube e os coletivos também é complexa.
O palmeirense Wanderlei Laurino participa de três movimentos de esquerda no meio do futebol: Ocupa Palestra, Porcomunas e Palestra Sinistra. Fumando um cigarro, Wanderlei dizia, de forma clara e calma, como havia muitas diferenças entre a atuação de um coletivo para o outro.
O Ocupa Palestra surgiu em 2017, quando palmeirenses se indignaram com a falta de liberdade que os torcedores tinham para circular nos arredores do Allianz Parque em dias de jogos do verdão. Rapidamente, o coletivo focou no combate à elitização das arquibancadas. Eles logo começaram a lutar pelo barateamento no preço dos ingressos, que aumentou muito com a arenização do futebol. O tema, que interessa a grande maioria dos torcedores, recebeu o apoio da massa palmeirense e, consequentemente, da Mancha Verde.
“A gente do Ocupa Palestra tem um relacionamento bom com a Mancha Verde, mas não é um relacionamento institucional”, explicou.
Wanderlei complementou o raciocínio ainda dizendo que a luta do Ocupa é mais focada na política interna do clube, enquanto outros coletivos acabam se voltando mais para a conscientização do torcedor. Como explica Guilherme Pontes, o Palmeiras, internamente, nunca foi um time muito democrático. São 148 conselheiros vitalícios, ou seja, que não foram votados, e 152 eleitos.
CORINTHIANS
Quando se pensa na relação do futebol com política aqui no Brasil, imediatamente um time vem à mente: o Sport Clube Corinthians Paulista. O timão tem, desde sua fundação, um forte vínculo com a esquerda. Durante a ditadura militar, o Corinthians foi um importante expoente na resistência com a Democracia Corinthiana, liderada pelo imortal doutor Sócrates.
“O Corinthians é o primeiro time a tentar fazer algo completamente diferente, fora do padrão”, explicou Rafael Oliveira, membro do coletivo Coringão Antifa. Com enormes pausas entre as frases, Oliveira afirmou que a principal luta da C16 – como é chamada a Coringão Antifa entre os membros – é resgatar a história do Corinthians. Diferentemente da relação da Mancha Verde, a Gaviões da Fiel, uma das torcidas organizadas mais vinculada à esquerda no Brasil, se dá bem com a maioria dos movimentos. Celia Medina, do Coletivo da Democracia Corinthiana, ressaltou que, mesmo com a relação sendo boa e estar melhorando ao longo dos anos, ela é menor do que poderia ser. “Dentro da CDC [sigla usada pelo grupo], há muitas pessoas contra as torcidas organizadas”, revelou.
CRESCIMENTO/DECADÊNCIA
Como a atuação desse tipo de movimento de esquerda no Brasil ainda é algo recente, não há um consenso de qual é o futuro dos coletivos. Muitos acabaram depois de alguns anos, por não conseguir se manter sem a massa da torcida. É o caso da Bambi Tricolor, que surgiu em 2013 e buscava combater a homofobia nos estádios.
Mesmo com alguns coletivos acabando por não ter mais força para continuar lutando, Guilherme Pontes afirmou que desde as manifestações em 2020, eles cresceram. Já Celia Medina discorda. A ativista crê que, desde o início do governo de Jair Bolsonaro, os coletivos, têm perdido força. Mas, ela ainda acredita nos benefícios que a esquerda possa ter com essa relação da luta social e o esporte: “O futebol é uma das manifestações culturais mais importantes do nosso povo das mais importantes”, concluiu.