Via The Intercept
VIVEMOS EM UM ESTADO POLICIAL. Os números comprovam: em 2020, 6.416 pessoas morreram pelas mãos das forças de segurança pública do país. Quase 80% delas, negras, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em plena pandemia, as polícias mataram mais do que nunca. “Num país democrático, as polícias não podem matar como matam no Brasil. É inconcebível que uma democracia conviva com isso”, argumenta o coronel Íbis Pereira.
Ex-comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro e hoje um “trabalhador da polícia”, como prefere se definir, Íbis passou boa parte dos 33 anos de carreira criticando a ineficiência do modelo de segurança pública no Brasil. “Nós não conseguimos desenhar uma arquitetura para lidar com o fenômeno do crime. Prevalece a fragmentação. Não temos totalidade orgânica para enfrentar e dar resposta ao fenômeno criminal”, afirma.
A conta de Íbis, com quem conversei no Rio na metade de dezembro, parece simples de entender. De um lado, os policiais, principalmente os militares, recebem cobranças para reduzir os índices de criminalidade. Mas não têm nenhum plano bem orquestrado com outras instituições – precisam, por exemplo, controlar a violência nas ruas, mas não há uma sintonia com a Polícia Federal para impedir a entrada de armas ilegais no país. Cobrados para resolver o problema, cada um busca fazer o seu e se fortalecer – e, sem um órgão fiscalizador forte, encontram espaço para o abuso e atividades ilegais. Na outra ponta, uma sociedade amedrontada, cansada de tanta violência.
Até que aparece alguém com um discurso raso e uma solução mágica (e batida): fortalecer a guerra contra os bandidos, com armamentos pesados, caveirões, helicópteros com atiradores de elite. Não funciona. Mas as polícias se sentem seduzidas e acolhidas pelo apoio, em vez de serem simplesmente abandonadas e cobradas, e parte da sociedade finge acreditar na ilusão da segurança. Enquanto isso, mais e mais vidas terminam com balas “perdidas” nas periferias.
“O poder tolera a violência policial, porque ela cumpre essa finalidade de um poder punitivo informal, que a gente herda da sociedade colonial”, explica o coronel. “Só que isso é ineficiente. As pessoas seguem com medo. Não existem políticas públicas de médio e longo prazo”.
Formado em História e Filosofia, Íbis – que chegou a se embrenhar pela política institucional, como candidato do PSOL a vice-governador do Rio em 2018 –, está quase terminando o doutorado, em que pesquisa as políticas de segurança pública nos governos do pedetista Leonel Brizola, de quem não esconde a admiração. Ele apontou problemas que vê como estruturais nas polícias brasileiras, criticou o neoliberalismo e a esquerda por não abrirem espaço para um debate mais aprofundado sobre o tema da segurança pública e falou sobre as raízes da identificação dos policiais com o atual presidente – e os riscos da atual política de segurança pública à democracia.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Ex-comandante da PM do Rio, o coronel não acredita numa maioria bolsonarista dentro das instituições policiais. “O presidente e o bolsonarismo devem ter uns 15% de brasileiros fiéis, desse núcleo duro. Não vai muito além disso. As polícias brasileiras devem seguir nesse mesmo percentual”, afirma.
Intercept – Policiais militares fizeram convocações para atos pró-Bolsonaro no último 7 de setembro. Isso demonstra parte do conservadorismo das polícias e uma identificação com o bolsonarismo?
Íbis Pereira – Acho que a própria natureza da atividade policial é conservadora, em qualquer lugar do mundo. É uma atividade essencialmente ligada à ordem, à preservação ou manutenção da chamada ordem pública, que é mais ou menos uma maneira pela qual os policiais do mundo inteiro compreendem a sua atividade. Isso leva naturalmente a uma postura conservadora diante do real, já que precisam preservar a ordem do que está posto. Policial tem esse feitio. Claro que estamos falando de uma instituição composta por milhares de pessoas, mas de uma maneira geral as instituições policiais têm um perfil conservador. O que não quer dizer reacionário, golpista. Mas sim de perceber na mudança de cenário – e quanto mais brusco pior – uma ameaça.
A identificação com o atual presidente e com o bolsonarismo vai além. Essa característica da atividade é apenas um dos elementos. Nem acredito numa maioria bolsonarista dentro das instituições policiais, nunca vi uma pesquisa sobre isso, mas eu apostaria em uma quantidade bem menor do que a gente imagina. O presidente e o bolsonarismo devem ter uns 15% de brasileiros fiéis, desse núcleo duro. Não vai muito além disso. As polícias brasileiras devem seguir nesse mesmo percentual.
Há um certo saudosismo dentro da polícia daquela carta branca para a violência e autoritarismo vivenciada durante os anos de ditadura militar?
É tentador pensar por aí, mas acho que o problema é um pouco mais complexo. Nós não conseguimos, em 33 anos de Constituição, desenhar uma arquitetura para lidar com o fenômeno do crime. Prevalece a fragmentação. Não temos totalidade orgânica para enfrentar e dar resposta ao fenômeno criminal. É uma peculiaridade interessante. A gente divide as atribuições entre três pessoas jurídicas diferentes: União, estado e município, cada uma com suas instituições, com uma parcela de responsabilidade pelo controle do crime, e não amarra nada em canto nenhum.
A Constituição instituiu o Sistema Único de Saúde e também o Sistema Único de Segurança Pública, mas a lei [que regulamenta o sistema de segurança] só foi criada em junho de 2018, no governo Temer, em ano eleitoral. Ou seja, é muito ruim. Veja, o Rio de Janeiro tem problemas com armas. E quem formula política de controle de armas e munições? O governo federal, a Polícia Federal e o Exército. Se armas são um problema no Rio, não basta envolver as polícias estaduais, tem que envolver o governo federal, com uma política adequada e eficiente de controles de armas e munições. Se não, o problema explode onde? Nos estados membros, que têm polícias fraturadas, onde só a Polícia Civil investiga, e não faz policiamento, e a Polícia Militar só patrulha, e não investiga.
Com isso, sobretudo as instituições estaduais acabam muito sobrecarregadas. Recai principalmente sobre a Polícia Militar toda a demanda de controle do crime. Por que a PM? Porque é a maior em número e está presente no dia a dia, nas ruas. Então, na falta de uma arquitetura bem desenhada e eficiente no controle do crime, essas instituições, que são muito demandadas e têm de suportar o ônus da cobrança, se sentem muito solitárias. Esse isolamento leva a uma coisa muito perigosa: a instituição começar a falar consigo mesma. Se sente incompreendida, injustiçada. E surge o heroísmo, uma maneira de lidar com essas feridas internas. E, com isso, você começa a se tornar uma presa fácil para esse tipo de discurso. Quando aparece alguém se dizendo amigo dessas instituições, fazendo discursos favoráveis, elas se deixam levar, como se encontrassem nessas pessoas alguém que realmente se preocupa com elas. É uma espécie de oportunidade de vencer essa solidão institucional.
“Parte do bolsonarismo se explica pela segurança pública.”
Mais do que a saudade da polícia de fazer o que queria, é uma tentativa de acreditar em uma resposta para esse isolamento. Como se pudessem, por meio daquelas pessoas, encontrar um caminho para equacionar seu próprio trabalho. Só que não é verdade, porque essas pessoas não têm proposta nenhuma além do discurso.
É mais do que o simples saudosismo, é um reflexo também do fato de não termos conseguido um modelo adequado para lidar com a segurança pública, como se a segurança pública se resolvesse com um salvador da pátria, na verborragia, e com uma aposta cada vez menor no planejamento, com planos bem estruturados.
Enfim, são instituições muito solitárias, vivem em ilhas. Por isso também surge esse fenômeno atual da autonomização das instituições policiais, que ganha força com a representatividade política do bolsonarismo. Buscam autonomia para se fortalecerem. E aí você tem que tolerar muita coisa quando dá mais autonomia e diz “dá o jeito de vocês”. Esse “dá o jeito de vocês” comporta o risco de o policial enxergar possibilidades de ganho. Você perde o controle. E aí vemos o surgimento dos matadores de aluguel, da milícia.
Esse é o paradoxo: a fragmentação é o problema, mas, ainda assim, as instituições a buscam. Somos vítimas de um ciclo vicioso, o remédio é o veneno. A autonomia das instituições é o próprio veneno. É como um time, não adianta ser um craque solitário, você só ganha um jogo com um time. E nós não funcionamos como um time na segurança pública.
Qual o perigo dessa aproximação entre a PM e o bolsonarismo?
A atividade policial tem um viés pragmático, de uma certa adesão a quem está no poder. Se a esquerda, no ano que vem, despontar como favorita e ganhar as eleições, o grosso dessas instituições vai permanecer fiel ao novo governo sem muito problema.
Isso não quer dizer que a gente não tenha de se preocupar com a reforma desse sistema como um todo. De novo, parte do bolsonarismo se explica pela segurança pública, se explica pelo fato de a gente não ter conseguido equacionar a segurança pública nos moldes do estado democrático de direito. A gente falhou nisso.
Tem a ver também com a forma como aconteceu a transição democrática, que não é muito diferente de outros momentos da nossa história. É uma negociação pelo alto, a gente muda para não mudar nada. Quando a Constituição de 1988 foi elaborada, não aceitaram o desafio de repensar radicalmente a segurança pública. A gente herda um modelo e leva para dentro de uma nova Constituição. A gente cria um capítulo de segurança pública, mas, na verdade, traz para o estado democrático de direito todo esse modelo antigo. Um modelo ineficiente.
Hoje, a gente tem quase 30 mortes por 100 mil habitantes. E, quando você fala de segurança pública você fala de medo. E o medo corrompe a democracia, porque se as pessoas começam a ter medo, elas começam a desconfiar e desacreditar no pacto político. E, diante do medo, é muito fácil cooptar pessoas para soluções fáceis, como “bandido bom é bandido morto”. Então, surge uma resistência à bandeira dos direitos humanos, em pensar a segurança pública com esse viés. Eu vi essa resistência no governo Brizola. Há uma aposta na polícia agressiva, dura, na coisa da guerra ao crime, guerra às drogas.
O que significa fundar uma política pública de guerra dentro do estado democrático de direito? É você operar no campo da exceção. Isso significa que você está minando a democracia e o estado democrático de direito. Então, a segurança pública como está constituída, ou veio se constituindo ao longo desses 33 anos, é uma espécie de porta aberta para o golpe, para a exceção.
Para Íbis, o modelo de segurança pública que temos é uma ameaça permanente à democracia – pela sua ineficiência e brutalidade. Ele ressalta ainda o baixo controle sobre as instituições. “Você tem o Ministério Público que, dentro da arquitetura prevista, é peça-chave de fiscalização, mas fiscaliza muito pouco – para ser muito gentil”, diz.
Há risco de as instituições policiais participarem de uma tentativa de golpe, caso Bolsonaro perca as próximas eleições?
Não vejo o menor perigo de a polícia como instituição não aceitar o resultado das eleições. Em 1964, deram um golpe sem as polícias – só entraram depois para garantir a ordem, foram incorporadas depois do golpe. E aí, começou esse trabalho de doutrinação e de formatação das instituições policiais a partir da ideologia da segurança nacional que continua até hoje. E acho que a guerra às drogas fez com que a doutrina sobrevivesse numa outra voltagem. As polícias não foram empregadas no golpe de 2016, no aprofundamento do golpe que levou à prisão do Lula. Esse receio que as pessoas têm está muito ligado à ideia de tropas marchando. E não precisa. As pessoas hoje dão golpe com argumentos jurídicos, com o Parlamento (que também participou de 64), com apoio da galera, da mídia hegemônica. Ninguém dá golpe sem base social, sem apoio. Foi assim em 64, em 2016.
“Num país democrático, as polícias não podem matar como matam no Brasil.”
Portanto, como instituição, eu acho que não há esse perigo. Mas o modelo de segurança pública que temos, da forma como está constituído, é uma ameaça permanente à democracia – pela sua ineficiência e brutalidade. Porque há baixo controle sobre as instituições. Você tem o Ministério Público que, dentro da arquitetura prevista, é peça-chave de fiscalização, mas fiscaliza muito pouco – para ser muito gentil. Então, a gente fala de um cenário fragmentado e de baixo controle. Essa configuração já é uma ameaça pelo seu nível de violência. A violência policial nos níveis que acontece no Brasil não corresponde ao estado democrático de direito. Num país democrático, as polícias não podem matar como matam no Brasil. É muito mais um estado policial. É inconcebível que uma democracia conviva com isso, a não ser que a gente limite democracia a votar e ser votado a cada dois anos, como se as instituições estivessem funcionando. E não estão!
O que não está descartado, na minha opinião, são pequenas insurreições, como aconteceu no Ceará. Mas não no sentido de que as polícias possam marchar sobre Brasília para defender esse presidente, caso ele perca as eleições. Nisso, eu não acredito. A nossa preocupação hoje deveria ser encarar o desafio dos problemas de segurança pública. Porque o meu grande medo é que, quanto mais o tempo passa, mais o problema se torna difícil de resolver.
Em 2020, tivemos um recorde de candidaturas de militares – um aumento de 12,5%, segundo levantamento do G1. Como você avalia esse aumento e essas candidaturas? Como a maioria desses candidatos militares vêm do campo conservador, é preciso que a esquerda também busque esse perfil, com policiais ligados aos movimentos antifascistas?
Olha, eu não sei se essas pessoas que se candidatam com essas bandeiras são realmente conservadoras. Eu respeito muito os conservadores. Acho o pensamento conservador importante. Muitas pessoas que se candidatam com essas bandeiras de defensores da polícia são mesmo reacionárias. E não são defensoras da polícia, porque se fossem estariam preocupados com a dignidade da atividade policial. Ou seja, estariam preocupadas em apresentar propostas que efetivamente pudessem garantir o exercício da atividade policial com consciência, com proteção. Chegam com um discurso belicista, querendo transformar os policiais em espécies de justiceiros. São inimigas da atividade policial e da democracia. Por isso, eu não os coloco nesse rol dos conservadores. São apenas oportunistas querendo surfar no medo e no desespero das pessoas, com promessas que não têm condições de cumprir.
“Na periferia do capitalismo, como o nosso país, o estado policial cai como uma luva.”
Eu acho que na esquerda, de modo geral, com exceção do Brizola ali nos anos 1980, 1990, ainda não há espaço para um debate mais aprofundado sobre o tema da segurança pública. Acho que não é um tema, digamos assim, simpático. Porque a nossa questão [da esquerda] é mudar a ordem, propor uma outra forma de organização social. A gente quer mudar para uma ordem que não produza tanta violência, sem exclusão, miséria, fome, abandono, desespero. E, às vezes, a gente não sabe muito bem como formular um discurso voltado para profissionais que trabalham exatamente na manutenção da ordem, que compreendem assim a sua atividade.
Tem coisas que a gente vai ter que colocar no longo prazo e coisas no curto prazo. E, algumas delas, a gente vai ter que fazer imediatamente, sem esperar mudar as relações de produção. Tenho plena convicção de que é possível fazer isso, se formarmos um discurso para segurança pública que consiga ser compreensível, viável e que dialogue com a perspectiva de uma mudança.
Muito mais do que buscar esses candidatos, a gente precisa abrir dentro dos partidos de esquerda um diálogo com os policiais. Para conversar, saber o que passa pela cabeça deles. Tentar convencer essas pessoas de que um outro mundo é possível, uma outra realidade é possível. O modelo de segurança pública, como esse que a gente tem, de cima para baixo, não muda. É preciso envolver os policiais.
Durante o governo de Claudio Castro, no Rio, as operações nas favelas se mostraram ainda mais letais do que as de seu antecessor Wilson Witzel, que defendia o “tiro na cabecinha”. Tivemos recentemente o caso da chacina no Salgueiro. Qual a lógica operada por esses governantes? Por que investir tanto em medidas caras, violentas e pouco eficientes?
Existe uma finalidade, mas ineficiente no controle dos indicadores criminais. Veja, por que levou tantos anos para se criar a lei do Sistema Único de Segurança Pública? No ano seguinte à Constituição, em 1989, o muro de Berlim cai. E o estado democrático de direito, que foi uma invenção do capitalismo para enfrentar o socialismo, não é mais necessário. Quando o muro cai, não precisa mais colocar a dignidade da pessoa humana como princípio. O neoliberalismo determina uma forma social diferente dessa. É a guerra de todos contra todos, não tem dignidade da pessoa humana, nem direitos humanos, é estado policial.
Na periferia do capitalismo, como o nosso país, o estado policial cai como uma luva. Não é por acaso que levou 30 anos para fazer uma lei – e uma lei muito ruim. Por isso, a gente até hoje não conseguiu dar conta desse modelo. O que me faz pensar que, de alguma maneira, cumpre uma finalidade dentro da forma social que opera na lógica da exclusão. O neoliberalismo opera na lógica da exclusão. E o que se faz com quem está excluído? Essa política de segurança pública centrada na guerra funciona nesse tipo de modelo. Temos um estado policial, não um estado democrático.
No Brasil, o poder punitivista sempre teve uma aplicação formal e informal. É um fenômeno muito próprio do colonialismo, uma maneira de exercer controle social. Tínhamos leis contra penas cruéis, no século 19, mas no espaço do senhor de engenho quem mandava não era a Constituição. Você tinha um direito penal formal e informal. E acho que isso atravessa todo o império brasileiro e sobrevive na República, chegando até os dias de hoje. Fenômenos como a milícia têm a ver com isso. A própria violência policial e a maneira como a gente lida com ela – essa tolerância – tem a ver com isso. O poder tolera a violência policial, porque ela cumpre essa finalidade de um poder punitivo informal, que a gente herda da sociedade colonial.
Só que isso é ineficiente para lidar com o medo. E ele vem desse uso sistemático da administração da exclusão através da violência. Não existem políticas públicas de médio e longo prazo. Aí a coisa gira em torno do voluntarismo, do “eu vou resolver isso prendendo”, ou “dando tiro na cabecinha”, como disse um governante. Fica tudo na base do voluntarismo, na solução mágica, no personalismo.
Não vejo chance de termos direitos humanos nesse sistema neoliberal.
Por que a política de Brizola não funcionou a ponto de se tornar um exemplo no Brasil?
Brizola foi uma das primeiras vítimas dessa onda de reconfiguração da extrema direita. Entrei na polícia em 1983, no primeiro ano em que os governadores foram eleitos diretamente – antes eram eleitos pelas assembleias legislativas. É quando entro na polícia. E saí no ano do golpe, em 2016. Entrei no momento da redemocratização, e o que se falava era de redemocratização das instituições. Brizola vem com um discurso de política de segurança focada em direitos humanos. Foi uma época maravilhosa. Na Carta de Lisboa, se você pegar, já está ali a necessidade de linkar como eixo central de política pública de segurança a dignidade da vida humana. Porque não é só proteger a vida, é a vida com dignidade, é a educação, é a voz. O Brizola constrói um programa de polícia comunitária. Era interessante, a gente tinha reuniões com a comunidade para prestar contas. Claro que nem todo mundo achava isso legal. Mas a gente prestava contas! Isso é um aprendizado de democracia, tanto para a comunidade, quanto para a polícia.
Até então, o discurso de direitos humanos estava muito centrado na luta contra a ditadura, presos políticos, e o Brizola traz isso para as políticas de segurança pública. E isso foi um grande choque. Quando entrei na polícia, já tinha gente com 30 anos de polícia. Aquilo foi um choque para eles. Mas não foi um choque só para a polícia, foi um choque também para a sociedade. E muita gente se insurgiu contra a política pública de segurança, não apenas pelo discurso, mas porque também era do Brizola! Ele era “O inimigo” da ditadura. Eu tive um comandante que não falava o nome do Brizola, se referia a ele como incendiário, o vermelho. Era o inimigo. E também não queriam que ele fosse presidente da República – e conseguiram.
As tentativas de mudança aconteceram dentro das possibilidades que o Brizola tinha. O governo federal continuou com as suas propostas, o modelo fragmentado já estava colocado naquele momento. Você tinha uma resistência muito grande também da sociedade em relação a isso. A gente teve toda a crise econômica dos anos 80 e uma mudança da dinâmica criminal, que a gente não conseguiu lidar adequadamente nos limites do estado. O crime organizado ou desorganizado, dependendo de como você enxerga isso, sobretudo naquilo que se relaciona na cena de drogas, veio de reboque nessa lógica de produção no mercado de drogas na América do Sul, que estava internacionalizando. Estavam criando novas rotas, com os cartéis de Cali e Medellín, reconfigurando o crime no Rio de Janeiro, que assumiu essa feição de crime desorganizado que a gente tem até hoje.
Acredito que essas experiências foram impactadas por esse contexto. Um contexto avesso à figura do Brizola, também com as resistências internas. Ele enfrentou os grupos de extermínio, botou um monte de gente na cadeia, tirou, acertadamente, o emprego de um monte de gente. Brizola entra e compra essa briga, traz a centralidade dos direitos humanos nas instituições policiais – e também fora delas – , em meio a uma crise econômica. Sem dinheiro, você não promove mudanças significativas. Então temos esses pontos: a reconfiguração do crime, a resistência à figura do Brizola e a crise econômica. Mas foi uma iniciativa que ainda tem muita coisa para ensinar nos dias de hoje. Sobretudo de promover a atividade policial na garantia dos direitos humanos. Acho que isso ainda é uma ideia que nasce naqueles anos que me parece urgente resgatar: o compromisso primeiro do policial em ser um promotor e garantidor da vida humana.