Via Opera Mundi
O senso comum de que futebol e política são assuntos que não se misturam é desafiado pelos coletivos de esquerda que têm se formado independentemente das torcidas organizadas dos clubes, como explica o historiador Micael Zaramella, autor do livro recém-lançado No Gramado em Que a Luta o Aguarda: Antifascismo e a disputa pela democracia no Palmeiras (ed. Autonomia Literária).
Em entrevista ao jornalista Haroldo Ceravolo Sereza, no programa SUB40 desta quinta-feira (27/10), o torcedor palmeirense de 31 anos explicou o funcionamento de coletivos progressistas como Ocupa Palestra, do qual participa, Porcomunas, Palmeiras Antifascista, Movimento Palestra Sinistro e Palmeiras Livre.
Contrariando também a associação frequente entre o Palmeiras e Jair Bolsonaro, Zaramella pontua a diversidade presente no conjunto de 18 milhões de palmeirenses, capaz de abrigar todo tipo de gente em termos políticos ou quaisquer outros. Os coletivos, que não têm estatuto de torcidas organizadas, cresceram em diversos clubes em contexto político agudo, principalmente a partir de 2013.
Os coletivos se distinguem das torcidas organizadas nas práticas adotadas, priorizando diversidade de ações nem sempre restrita ao espaço do estádio e da arquibancada.
“Nenhum desses coletivos mantém sua presença de forma recorrente identificada no estádio, e muitos integrantes são membros de torcidas organizadas como a Mancha Verde, a TUP (Torcida Uniformizada do Palmeiras) e a Rasta”, afirma.
Essas associações têm em comum a relação com o campo progressista, com diferentes nuances e formas de ação política. “Atuam conjuntamente com alguma frequência e estabelecem alianças com as torcidas organizadas em certas pautas e ações”, explica.
O historiador cita como exemplos a campanha pela redução do custo dos ingressos e o evento antirracista “Do Palmeiras faremos Palmares”, realizado pela TUP junto a vários coletivos palmeirenses.
Zaramella descreve alguns dos coletivos, a começar pelo que integra, Ocupa Palestra, que procura atuar não só junto à torcida, mas também dentro da política institucional do time: “é composto por conselheiros do clube, que tentam construir instrumentos para a democratização ou a radicalização da democracia dentro do Palmeiras”.
O Palmeiras Antifascista, por exemplo, nem sempre está identificado no estádio e prioriza a ação política direta, de enfrentamento ao neofascismo. O Porcomunas tem relação mais próxima com movimentos sociais e partidos políticos, e se faz presente principalmente nas manifestações de rua. O Palestra Sinistro é mais próximo de integrantes de torcida organizada e tem relação mais evidente com a cultura de arquibancada. E o Palmeiras Livre atua no combate à LGBTfobia e ao machismo nos estádios, a partir de uma perspectiva de classe social.
História da SEP
No Gramado em Que a Luta o Aguarda, Zaramella remonta à história do time que nasceu na comunidade italiana no Brasil e se chamou Palestra Itália até 1942, cotejando-a com o desenvolvimento do fascismo italiano, mas também com o tempo presente no Brasil. “Já em 1923, foram fundadas as primeiras associações fascistas de italianos no Brasil. Na coletividade italiana houve uma disputa contínua entre fascistas e antifascistas, que assumiu características específicas no Palestra Itália”, diz.
Fundado em 1914 por operários e comerciantes de classe média, o Palestra despertou atenção da elite italiana em São Paulo nos anos 1920: “muitos dos elementos de elite do Palestra foram os primeiros a apresentar sua simpatia pelo fascismo, como os Matarazzo e Crespi, presentes no conselho do clube”.
A resistência à associação também aconteceu desde o início, até mesmo com brigas físicas entre conselheiros por conta da tentativa do clube de comemorar o aniversário da Marcha sobre Roma de Benito Mussolini.
“A partir de 1937, com o Estado Novo, disposições do governo começaram a inibir a existência de agremiações que proclamassem uma nacionalidade estrangeira, no contexto em que se começa a debater a mudança de nome do Palestra Itália”, continua o historiador, descrevendo o processo de ampliação do alcance do clube para além dos limites da comunidade italiana.
“O Palestra Itália procurava explicitar que seria muito mais brasileiro que italiano, e mudou de nome para Palmeiras em 1942, quando o Brasil entrou na guerra junto aos Aliados, e a Itália fascista se tornou inimigo de guerra”, disse.
Na gangorra entre fascismo e antifascismo, o posicionamento na guerra decidiu a questão, ao menos aparentemente: “a maior parte dos italianos que declaravam fidelidade ao fascismo no Brasil automaticamente deixou de ser fascista quando o Brasil entrou na guerra contra a Itália. Os elementos fascistas no Palestra seriam expressões do fascismo difuso, aderindo na hora a um antifascismo contextual”.
Zaramella compara tal fascismo difuso ao comportamento do ex-presidente do Palmeiras Maurício Galiotte a partir de 2018, quando o então candidato presidencial Jair Bolsonaro protagonizou momento controverso no final do campeonato brasileiro, vencido pelo time paulistano.
“Galiotti inicialmente assumia a responsabilidade pelo evento, e de 2020 para 2021 começou a jogar para a CBF a responsabilidade de Bolsonaro ter quebrado o protocolo e participado da premiação”, afirma. Em sua interpretação, esse distanciamento motivou Bolsonaro a se aproximar de outros times, como o Flamengo. “Isso não significa que descolou, nesta semana mesmo Bolsonaro foi ao jogo do Palmeiras, eu estava presente e vi mais uma vez uma situação de arquibancada dividida e polarizada. Muita gente estava desconfortável. A tensão ainda está posta”. conclui.