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Uma homenagem à Zé Celso
Cultura e Esporte

Uma homenagem à Zé Celso

Em homenagem ao falecimento do dramaturgo, publicamos o artigo "A afirmação da vida até na morte: o teatro de Zé Celso e a psicanálise lacaniana", de Guilherme Henderson

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Tempo de leitura: 20 minutos.

Via Revista Lacuna

A afirmação da vida até na morte: o teatro de Zé Celso e a psicanálise lacaniana

Estamos em 1985. O Copacabana Palace é invadido pela escola de samba da beija-flor, à frente Joãozinho Trinta, que acabara de assumir sua homossexualidade, traz o clima do carnaval, do tropicalismo, para mais de mil pessoas presentes. Presenças ilustres, grandes intelectuais como o sociólogo Gilberto Freyre, o lógico Newton da Costa (que apresentava a lógica da paraconsistência) e o teatrólogo José Celso Martinez Corrêa. Esta grande festa era o congresso do Colégio Freudiano, de psicanálise lacaniana, intitulado carinhosamente “Congresso de Psicanálise da Banana”. Logo, vemos que a tentativa de aproximar a psicanálise do teatro de Zé Celso, do carnaval, da festa, não é nova, e sim o abre-alas da inserção de Lacan no Brasil: “O Lacan cancan era uma brincadeira que permitia assimilar o Lacan. Nós brasileiros brincamos e tendemos a assimilar reinventando” disse Betty Milán em entrevista[1].

A psicanálise lacaniana entra no brasil em meio a dança, a folia. Essa incorporação criativa da psicanálise, ao contrário do que podíamos esperar, cada vez mais cedeu espaço para o famoso papagaio do livro de Betty[2]. Este bicho que apenas repete o que o Doutor Lacan lhe falam, o velho e emudecedor “lacanês”, língua temida por todos psicanalistas que ainda querem ter voz e escuta. É preciso sempre tomar bastante cuidado com a psicanálise: ela acaba roubando a voz, e outros objetos… Assim, como realmente escutar o som dos bichos e das bichas tupi sem catequizá-los com um lacanês e em nome de Lacan?

Este ensaio pretende ser entendido como um “ensaio sensual”, uma tentativa de recuperar o espírito “la cancan” de pensar a psicanálise e a cultura brasileira. Tentaremos resgatar e fazer falar sujeitos que a princípio não falam sozinhos[3] e assim introduzir uma dimensão da verdade. O que este pre-texto quer é expor a psicanálise lacaniana ao modo da plateia de Zé, que é exposta em suas peças pela experiência da nudez, da morte, da música, da macumba, das Bacantes, enfim expor Lacan à TragiComediOrgya. Naquilo que ressoar no leitor, no que for realmente lido, nisso se revelará a função criadora das palavras, sua função religiosa, que pode nos lançar, ou não, no abismo da experiência.

No dia 23 de dezembro de 1987, o corpo imortal do poeta palhaço – TragiCômicOrgyástico[4] – Luis Martinez Corrêa foi encontrado em seu apartamento revestido com mais de um século de facadas. 107 facadas homofóbicas. Quantas bastariam pra matar seu corpo de mortal? O que estes assassinos tentam matar e que não morre, a poesia de Zé Celso, irmão de Luís, responde: “Tentam suicidar o que está lá dentro Escondido/O divino mortal apaixonado perdido”[5]. Eles não tentam matar, tentam suicidar. Matando o outro, tentam suicidar o “divino mortal apaixonado” em si.

Durante o enterro de Luis, quiseram esconder este corpo desfigurado fechando as portas do caixão, com medo da contaminação, do contágio desfigurante que o espelho da morte nos traz. Porém, Lina Martinez Corrêa, mãe de sangue, Lina Bardi[6], amiga da família, e Zé Celso quiseram expor este corpo de Dionísio afirmando que este não iria morrer dentro de um armário! Enquanto a nossa cultura encarcera a morte, e se afasta dela, Zé constrói uma narrativa de reverência e blasfêmia a tudo aquilo considerado inviolável[7]: o sexo, a heterossexualidade e a morte. Luís não morreu, porque bicha não morre, vira purpurina. Há verdade nessa afirmação de re-existência, não é mera negação da morte, como diria talvez um psicanalista, ou um luto “não trabalhado”. Isso é aprovação da vida até na morte[8], uma vida que permanece contagiando, como a purpurina, que se espalha por toda parte quando se brinca, que se lança no outro e fica. O problema é que a purpurinada para alguns anuncia um horror semelhante ao da morte, é ameaça de suas estruturas heterossexuais.

A blasfêmia operada por Zé contra o interdito da morte nos leva ao excesso dos limites, ao mundo da violência[9], do horror do cadáver, da ameaça de contágio. Neste mundo de excessos, Zé não quer que recuemos à violência. Quer que a olhemos nos olhos. O luto em Zé não é trabalho, o luto em Zé é luta.

Lacan[10] aponta que em todas as relações imaginárias o que se experimenta é uma experiência de morte. Experiência constitutiva de todas as manifestações da condição humana. Cabe perguntarmos: mas se essa angústia que parece desintegrar nossas partes, cambalear nossas pernas, abalar as estruturas imaginárias do Eu, nos leva a uma experiência de morte, é possível pensar uma experiência da morte além da assustadora morte prevista pelo imaginário? Se uma das primeiras teses da psicanálise Lacaniana é justamente que o sujeito em psicanálise não é o Eu, e que o Eu talvez seja a perversão pura, um sintoma, a sede da agressividade, cabe perguntamos: é possível repensarmos a morte para além do Eu? para além da morte anunciada por um corpo morto?

Acredito que podemos responder afirmativamente a esta questão, com uma indicação do próprio Lacan em O mito individual do neurótico[11]. Lacan termina o texto citando a morte de Goethe, dizendo que este, em seu leito, em seus últimos minutos, ao ir perdendo sua visão, afundou com os olhos abertos em um buraco negro, e pronunciou suas últimas palavras: “Mais luz! Mais luz! Mais luz!”[12].  Pergunto: de quem é este grito que pede mais luz? Me parece que é grito de quem quer olhar a própria morte, quer viver a própria morte, quer a luz. O ato de Zé Celso no enterro de seu irmão toca neste ponto: ao invés de fechar as portas para a escuridão do armário-caixão, Zé ilumina a morte de Luís, lhe traz à luz. Zé dá à morte de Luís sua vida.

Nesta mesma época, Zé acabara de devorar a obra de Oswald de Andrade e os mistérios da antropofagia que o fizeram reconhecer o contraste entre os antropófagos e os assa-cínicos. Ele nos diz que os assa-cínicos são aqueles que “[…] não conseguem comer a carne humana dos poetas”[13]. Enquanto nós brasileiros antropófagos que somos, conseguimos sim comer desta carne. No próprio Manifesto Antropófago encontramos uma indicação curiosa. Nele afirma-se que nós brasileiros, antes da colonização, já “sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais”[14]. Como se apontasse que para elevarmos a morte a dignidade da vida seria preciso trabalharmos a gramática, a linguagem. Da mesma maneira em que as fronteiras entre o eu e o outro, a natureza e a cultura, o humano e o animal são discutidas atualmente, parece haver uma resistência em repensarmos as fronteiras entre a o corpo e o espírito, entre a vida e a morte.

Como nós transpúnhamos o mistério e a morte neste Brasil? Esta é uma pergunta direta aos antropólogos, mas que não pode ser ignorada por nós psicanalistas. Há indicações claras de Lacan de que as bases antropológicas da psicanálise, aquelas que estruturam a ideia corrente de Édipo deveriam ser revistas[15]. E que se quisermos dar um passo no entendimento destas dualidades “é preciso que façamos etnografia”[16], logo a antropologia brasileira pode nos ajudar.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro[17] já apontou em estudo que tais distinções deveriam ser cuidadosamente revistas se quisermos compreender o ponto de vista ameríndio (o nosso!). Nesta perspectiva, homens, animais, plantas e coisas, não são regiões diferentes do Ser, mas pontos de vista humano-espirituais escondidos em envoltórios, em “roupas”. Isto é: há um ponto de vista humano-espiritual em cada coisa no mundo. O xamã na tribo é o responsável por conhecer este ponto de vista, conhecer para o xamã é personificar, tomar o ponto de vista, reconhecer outro sujeito. Conhecer um alguém na coisa.

O xamã, Zé Celso e o psicanalista são semelhantes neste ponto: apontam para o reconhecimento daquilo que não fornece mais as luzes projetadas por nosso próprio Eu[18].  Os três apontam que é possível pensar um sujeito que seria a realização de um mais além do eu, e do próprio humano. Vladmir Safatle indica que foi preciso para o Eu excluir três aspectos para constituir sua imagem: a Animalidade (aquilo que não tem dignidade de ser enterrado), a Despersonalização (aquilo incapaz de se realizar-se como pessoa), o Monstruoso (aquilo que não respeita as estruturas elementares do parentesco). Sempre que estamos diante destes três aspectos do inumano experimentamos um estranhamento, uma angústia, uma abjeção.

Deixemos claro que as figuras do inumano que despertam abjeção não necessariamente se restringem ao fantasma, ao animalesco.  No teatro, Antígona é uma das figuras possíveis desse inumano, e em nossa cultura é evidente que a homossexualidade pode ocupar o mesmo lugar. Judith Butler faz essa comparação em seu livro O Grito de Antígona (2001). Acredita haver um problema estrutural na interpretação lacaniana da heroína trágica de Sófocles. Butler aponta que nesta interpretação, Antígona é aquela que busca um desejo que tão somente pode levá-la a morte precisamente porque pretende desafiar as normas simbólicas de Creonte[19].

“Nada menos dionisíaco que Antígona”[20], afirma Lacan, já que ela escolhe a “visada da morte”, ou o “puro desejo de morte”. Apontando para o fato de que o desejo de Antígona se ligaria ao desejo do outro, da mãe, do seguinte modo: o desejo de assumir a validade do crime herdado do desejo da mãe. Resta a Antígona se sacrificar para a manutenção desse ser essencial que é a até familiar. Antígona perpetua, eterniza, imortaliza a desgraça familiar. Seria esta a maneira correta de interpretar o desejo de Antígona? Ou, em realidade Antígona representa uma crise no interior do simbólico que afeta sua própria inteligibilidade? [21]

Parece que é a estrutura simbólica que não consegue reconhecer o desejo estranho de Antígona, esse desejo invisível a sombra do que se entende por incesto, esse amor pelo irmão. É o não reconhecimento deste desejo que faz de sua vida uma morte em vida. A vida de Antígona se torna ininteligível, lhe resta o puro desejo de morte, lhe resta uma morte desumana como a do irmão. Convivemos com mortes e vidas desumanas a todo tempo. Recentemente a mãe de um amigo gay falecido, me disse que preferia cremar o filho a enterrá-lo, por ter medo de que o enterro parecesse uma boate, uma festa com tantas bichas.

Quais poderiam ter sido as condições de inteligibilidade que teriam feito possíveis a vida de Antígona, de seu irmão, de meu amigo? Quais as condições de inteligibilidade teriam permitido a eles uma morte mais humana? Em outras palavras: Quais esquemas de inteligibilidade convertem nossos amores em legítimos e reconhecíveis, e nossas perdas em verdadeiras perdas?[22]

Quando a psicanálise pensa um sujeito que é a realização do mais além do eu, do humano, que aquele que não é escravo de uma forma normativa de humanidade, e se dispõe a ouvir como faria um xamã aquilo que foi arruinado pelo progresso em direção à individualização/humanização, ela permite os sujeitos constituírem relações não narcísicas[23], isto é abertas ao outro. Veremos que teatro de Zé Celso pode nos mostrar as balizas para este caminhos possível, uma nova experiência do abjeto e da morte. É só através da afirmação da vida na morte, do humano no inumano, do espírito no corpo, que se fará presente a dimensão renovada de uma experiência pessoal, uma memória, uma experiência de não-esquecimento, que pretende resgatar a voz dos mortos, fazer com que o inumano fale, e com a mesma força do humano. Deixemos a história do teatro de zé nos desumanizar.

O Teat(r)o Oficina pegou fogo em 1966, mas para Zé isso foi um ato divino, já que após o incidente seu teatro finalmente renasceu das cinzas, em todos os sentidos. Ele foi reconstruído em 67, mas virou alvo do comando de caça aos comunistas em 68, acabou invadido pela polícia em 74. Zé nesta data foi preso e torturado.  Durante a tortura, após olhar no fundo dos olhos do torturador, afirmou que viu ali… a humanidade. Foi exilado por cinco anos em Portugal e retornou ao Brasil em 79. Nesta data o Oficina pôde ser finalmente renovado pela arquitetura de Lina Bo Bardi.

Há uma renovação completa do Teatro de Zé nessa época, o teatrólogo devora um verdadeiro banquete antropófago intelectual com as delícias de RimbOswald, Artaud, Nietzsche, Lacan, Freud, Sartre, Nelson Rodrigues, Brecht, das tragédias, comédias do teatro grego, do Candomblé. A indiferença, a desafetação de uma plateia que vai ao teatro tradicional de palco italiano ver de longe o drama dos atores, passa a ser desbatida[24], suspendida, por um ato do próprio ator em exercício, um atleta afetivo[25] .  Como uma criança, o atleta afetivo, o ator, transforma seu ato em brinquedo, propiciando a si mesmo e ao outro felizes descargas afetivas. Desse retorno constante (automaton), deste verdadeiro exercício de personal-trainer afetivo, busca-se através deste ato o encontro com o real (tyché).

Te-Ato é o ato realizado pelo participante do ritual do Teat(r)o Oficina, ator, plateia, essa mistura. Este ato visa o encontro com o real, a partir do ritual, através de uma repetição ritualizada. Como afirma Lacan, apenas um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável com o real[26].

Neste encontro com o real em uma peça de Zé, podemos não suportar, e ir embora, podemos faltar, tanto faz, o que Zé quer é que algo se mova, uma atitude. Não por acaso suas peças duram mais de cinco horas, pretende com isso demonstrar que ninguém aguenta tanto tempo parado, ele não quer ninguém parado. Quer o movimento nem que seja o das vaias. O artista Zé e sua arte, o te-ato, tornam-se um ato erótico[27] que contamina.

Exemplo disso é que em 2010, em um terreiro teatro extádio[28] encenou-se para um público de mais de três mil pessoas, durante cinco horas de duração, a versão tragycomediaorgyática de Bacantes, de Eurípedes, tragédia da Grécia do Brazyl sobre o nascimento, renascimento e reconhecimento do divino em Dionísio. A tragycomediaorgya deve ser entendida aqui não apenas como um gênero teatral criado por Zé[29], mas como a narrativa de sua forma de vida: um percurso em ato, poético, ritualístico, festivo, carnavalesco que visa afetar o outro e retirá-lo de seu estado identitário comum, com o objetivo de dispô-lo mental, corporal, e religiosamente para uma experiência produtiva de indeterminação[30], evocação e incorporação, dos antigos ditirambos.

A distribuição de vinho aos espectadores, o permanente convite à participação nos cantos e danças, o desnudamento ritual de uma pessoa escolhida entre o público, contam como alguns dos recursos centrais desta prática cênica verdadeiramente ambiental. A TragiComediaOrgya é uma celebração da vida, do nascimento do Te-Ato, que possibilita a catarse (purgar o temor e a piedade) e a Orgya (que nos leva a lei do desejo). Os meios para isso são: A música (que contagia) e o Coro (que emociona). Zé ainda define a TragiComediOrgya como uma Macumba. Um ritual de incorporação e invocação dos mortos e dos Deuses. Cabe aqui uma citação de Lacan a respeito do nosso País:

Platão nos diz que aqueles que tiveram a iniciação de Zeus não reagem no amor como aqueles que tiveram a iniciação de ares. Substituam esses nomes por aqueles, que em tal estado do Brasil, podem servir para designar tal espirito da terra, da guerra, tal divindade soberana – não estamos aqui para fazer exotismo mas é justamente disso que se trata[31] .

Como observa Lacan, nós cristãos varremos desse campo da religião os deuses, as distintas possibilidades de desejo que apontam as divindades como o espírito da terra ou da guerra, exu ou ogum, que se misturam aos nossos desejos e multiplicam nossas experiências. O que aconteceu é que a religião cristã massacrou tais experiências e desertou nosso campo de desejos possíveis. Invocar as entidades do candomblé, invocar os deuses como Dionísio, no Terreiro que é o Teat(r)o Oficina tem por objetivo produzir o efeito de ascendência do real sobre o simbólico: a ascendência do som musical sobre isto que é significado pela lei dos olímpicos, lei dos homens. A função do tambor, da música, do samba, do batuque, do Carnaval, é fazer com que o público experimente o ilimitado a partir do som, se permita um excesso a partir da musicalidade. Da mesma forma que no teatro grego o ator de destaca do coro, faz sofrer este coro por torná-lo não todo, e volta-se novamente para a lei, a plateia que se separada da tragicomediorgya, nunca se separa completamente. Leva com ela um resto.

Tanto Antígona como Zé Celso são estes atores que de certa maneira se destacam do coro, voltam-se a lei da cidade e carregam consigo esses resquícios da experiência do ilimitado, a lei do desejo. Zé parece situar-se, como Antígona, em uma zona entre duas mortes, entre duas visadas perante a morte. Uma é a morte “de fato”, a do seu irmão, a anunciada por seu torturador, ou por seus cabelos brancos.  A outra é aquela que quer exterminar a ethernidade de luís, exterminar o seu desejo, a continuação da vida de luís apesar da morte de seu corpo.

Por fim, notamos semelhanças entre Zé e a interpretação de Antígona feita por Lacan. Ambos, Zé e Antígona, tiveram um irmão morto. Em ambos também encontramos o problema do reconhecimento na morte: há mortes mais reconhecíveis que outras. Ambos adotam a linguagem do estado, se apropriam dela para levar a cabo o seu desejo. Ambos conhecem bem a lei e por isso a transgridem.  Ambos são realizações do inumano no sujeito.  Em ambos há um não ceder em seu desejo, isto é ambos se vinculam de forma patológica ao seu objeto singular e pretendem dessa maneira realizar o universal. Mas nota-se que há diferenças entre a leitura lacaniana e o fazer de Zé[32].  Por exemplo: Antígona é uma vítima ativa, Zé, um convite para um projeto de luta; Antígona quer enterrar o irmão, Zé, celebrar a ethernidade do irmão; Antígona recusa companhia, quer a solidão, Zé quer a multidão, o extádio; Antígona é emparedada, morta em vida; Zé através do teatro oficina, em seu desafio, está vivo na morte.

Zé parece indicar que é possível um destino menos trágico, como gostaria Butler, e mais tragycomicorgiástico para aqueles que são mortos em vida por seguirem a lei do desejo. A morte é o destino de todos nós, mas o que Zé propõe é uma inscrição da morte na própria vida. Não propõe uma promessa de eternidade em um mais além, mas uma ethernidade que se dá na celebração da festa, na orgya, no te-ato, uma ethernidade que se dá no encontro ritual.

Mesmo Lacan afirmando que não há nada menos dionísiaco que Antígona, cabe perguntarmos porque ao final de Antígona então o coro invoca logo o Deus Dionísio? O deus dos rituais orgyásticos do nascimento do teatro? O deus das bacantes. O coro na tragédia é a voz de Dionísio! O coro nos lembra que a morte de Antígona se imortaliza e revive com o nascimento do Teatro!  A invocação de Dionísio, reintroduz um efeito na ordem simbólica da lei, a exigência dessa parte de real oceânico que o fio das palavras não pode dar conta[33].

Acredito que o Teatro Oficina, a figura fascinante de Zé Celso, o candomblé, a antropologia, a antropofagia brasileira, uma psicanálise que critica seus pressupostos estruturalistas heteronormativos, apontam para esta outra inteligibilidade, inserem isso que é da ordem do irreconhecível em uma prática de reconstrução de uma narrativa, de recuperação da memória, através da experiência da musicalidade das palavras, da reverência e incorporação do passado, dos mortos, de Dionísio, inclusão disto que não é reconhecível pelo Eu, pelo Humano, na própria ordem da vida.

No início de algumas de suas peças Zé propõe uma invocação, um encontro com os mortos, um convite à participação. Ele diz, então, o nome de alguém que já morreu e pede para que os participantes respondam: presente. Gostaríamos de terminar aqui do mesmo modo:

  • Luis Martinêz Corrêa?
  • Presente!
  • Jacques Lacan?
  • … presente!

REFERÊNCIAS

ARTAUD, Antonin (1935) “Um atletismo afetivo”. O Teatro e o seu Duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo, Max Limonad, 1984.

BUTLER, Judith (2001) El grito de Antígona. Trad. Esther Oliver. Barcelona: El Roure Editorial

BATAILLE, Georges (1957) O Erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Autêntica, Belo Horizonte, 2013.

DIDIER WEILL, Allain (2001) Prefácio. In: MAURANO, Denise (2001) A Face Oculta do Amor. Rio de Janeiro: Imago

DUNKER, Christian Ingo Lenz (2012) O Real e a Verdade do Sofrimento. São Paulo, Revista Cult, Ed. 174

LACAN, Jacques (1958-59) O Seminário Livro VII: A Ética da Psicanálise. Trad. Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988

LACAN, Jacques (1954) O Seminário Livro XI: Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998

LACAN, Jacques (1952) ‘O Mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose’. In: LACAN, Jacques (2007) O Mito Individual do Neurótico. Trad. Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

LACAN, Jacques (1945) ‘Do símbolo a sua função religiosa’. In: LACAN, Jacques (2007) O Mito Individual do Neurótico. Trad. Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

MILAN, Betty. (1991). O Papagaio e o Doutor. São Paulo: Record

MOSTAÇO, Edécio (2012) Tragédia+Comédia+Orgia. Florianópolis, Anais do VII Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas

SAFATLE, Vladimir (2012) O Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento.  São Paulo: Martins Fontes

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2002) “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2002) A inconstância da alma selvagem. São Paulo, CosacNaify

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