Por Projeto Brasil Real é um País que Luta
Via Brasil Real é um País que Luta
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Se é verdade que nossa história não começa em 1500 com a chegada de Pedro Álvares Cabral nessas terras, é verdade, também, que nossa história enquanto Brasil carrega até mesmo em seu nome as marcas do processo de
colonização. Não é possível compreender as mazelas que nos atravessam ainda hoje sem olhar para trás, para a fundação de um país marcada pelo espólio e a violência colonialista.
Longe de refletir a realidade, a narrativa oficial de uma colonização pacífica, do “descobrimento”, da chegada da “civilização” para os povos “bárbaros” originários da América, atravessada por narrativas míticas fundadas no mito cristão da criação, em que se vislumbrava o “novo mundo” como uma espécie de paraíso perdido com uma humanidade caída, justificou desde o primeiro momento a “guerra justa”, seja pela dominação ou pelo genocídio dos povos indígenas.
O processo de colonização do Brasil se deu desde o primeiro momento em um quadro de expansão do comércio mundial. Disputado pelas potências europeias, se transformou em um grande celeiro de Portugal. A exploração de matérias primas e das terras passava por dois desafios: conquistar o território e dominar o povo que ali vivia, dizimando sua cultura por meio da violência. A escravização dos povos indígenas teve início tão logo a necessidade de mão de obra surgiu.
Os povos indígenas dominados, concentrados nos aldeamentos, trazidos dos “sertões”, territórios ainda não dominados e explorados pelos colonizadores onde não haveria ordem, eram submetidos a um processo profundo de aculturação, formavam contingentes para o trabalho escravo e como força militar para as guerras. Operações conhecidas como Bandeiras, protagonizadas por personagens que vergonhosamente seguem nomeando avenidas e monumentos nos grandes centros urbanos, exaltados como valentes desbravadores, tinham como um de seus objetivos a caça aos povos indígenas para escravizá-los.
A resistência dos povos originários teve início desde o momento em que aportou a primeira caravela em solo brasileiro. Mesmo em condições díspares, dada a brutal violência e a tecnologia militar empenhada na conquista dos territórios que impôs um verdadeiro morticínio, além das doenças trazidas pelos europeus, causando epidemias que dizimavam multidões de indígenas, a luta contra os colonizadores nunca cessou. Foram várias as expressões que tomaram e os episódios que marcaram as rebeliões e revoltas que insurgiam contra a dominação. Entre os primeiros processos de revoltas massivas, estão o que ficaram conhecidas como as Santidades.
Ancorados em suas crenças tradicionais, já sincretizadas com elementos do catolicismo imposto pelo colonizador, mas, sobretudo, expressando a insubmissão à dominação, organizaram-se movimentos de caratér messiânico entre os povos indígenas que resistiam ao processo de aldeamento e escravização nas capitanias hereditárias que anunciavam o advento de um novo tempo sem violência e exploração, um tempo de liberdade. O nome dado pelos portugueses a esses movimentos fazia alusão ao seu caráter mítico-religioso.
Entre os diversos processos de revoltas caracterizados por essas particularidades, o mais importante entre eles, ocorrido no território do Recôncavo bahiano e que, segundo o governo da Capitania da Bahia, chegou a reunir cerca de 20 mil insurretos, ficou conhecido como Santidade de Jaguaripe e representou uma ameaça aos senhores de engenho. Mesclando elementos das crenças tupi e do catolicismo, o movimento incentivava os indígenas a fugir dos aldeamentos e se unir à eles.
Iniciado em meados de 1580 e liderado por Antonio, indígena nascido em um aldeamento jesuíta na cidade de Ilhéus, e “Maria Mãe de Deus”, como era conhecida sua companheira, o movimento teve início no sertão do Orobó e se fortalecia, enviando emissários para os aldeamentos e engenhos para conclamar aos indígenas que se rebelassem, abandonassem o trabalho escrevo e se juntassem à Santidade. A perda de mão de obra e a ameaça contra o domínio dos aldeamentos fez com que o senhor do engenho de Jaguaripe, Fernão Cabral, investisse sobre a Santidade numa tentativa de cooptá-los e ofereceu sua fazenda para que se tornasse a nova sede do movimento.
Apesar de parcialmente bem-sucedida, a investida de Fernão Cabral não foi suficiente para barrar o movimento que crescia não só entre os indígenas, mas que também atraía outra pessoas ao redor de seu discurso messiânico, impulsionando revoltas e motins que inquietavam os senhores da região. Finalmente, em um último movimento, o governador da Capitania enviou forças para Jaguaripe que destruíram a Santidade, aprisionaram os indígenas e os reenviaram para os aldeamentos e fazendas de onde haviam fugido. O destino do contingente que havia resistido à manobra de Fernão Cabral e permanecido no sertão é incerta.
A Santidade de Jaguaripe é memória, ainda viva, na luta dos povos originários que resistem à dominação e destruição de suas terras, sua cultura e suas crenças. Desde 1500 até aqui nossa história é construída sobre a invasão e o extermínio dos povos indígenas, mas não sem resistência. Resgatar a coragem e a bravura daqueles que enfrentaram o colonizador e tombaram lutando é reafirmar a disposição de combate do nosso povo e a possibilidade de outro futuro. Nosso passado, presente e futuro sempre estiveram e estão em disputa.
Referências:
SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloisa Maria Murgel. Brasil: uma biografia. . São Paulo: Companhia das Letras.
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/23332
Saiba Mais
Ecos de liberdade: a Santidade de Jaguaripe entre os alcances e limites da colonização cristã (Jamille Oliveira Santos Bastos Cardoso / UFBA)
A santidade de Jaguaripe: catolicismo popular ou religião indígena? (Isabelle Braz Peixoto da Silva / UFC)
Fernão Cabral de Ataíde e a Santidade de Jaguaripe (José Calasans / UNEB)
Antagonismo colonial: a Santidade de Jaguaripe e a construção da liberdade no século XVI no Recôncavo Baiano (Edvaldo Nascimento de Jesus / UFRB)
Fé cristã e resistência indígena no novo mundo: uma análise da santidade de Jaguaripe e sua relação com a práxis jesuíta (João Ricardo dos Santos Campanholo / UNIFAL)