Por Projeto Brasil Real é um País que Luta
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A Revolta dos Malês, ocorrida em janeiro de 1835 em Salvador, na Bahia, foi um dos mais importantes episódios da resistência contra a escravidão no Brasil. O levante foi conduzido pelos negros escravizados e libertos africanos islamizados, conhecidos como malês, termo derivado do iorubá “imale”, que significa “muçulmano”. O movimento deixou um legado profundo nas lutas contra a escravidão, marcando a história da resistência negra no Brasil, potencializado pela luta contra a perseguição e a investida sistemática das classes dominantes escravocratas de formar uma hegemonia cultural que refletiam, por sua vez, as relações coloniais de dominação.
No início do século XIX, Salvador era uma cidade marcada por grande diversidade étnica e religiosa, com uma população composta em sua maioria por africanos e afro-descendentes. Entre eles, havia grupos de escravizados e libertos que haviam mantido vivas suas práticas religiosas, culturais e linguísticas, incluindo o islamismo e as religiões de matriz africana. Esses grupos, especialmente os malês, se destacavam por sua organização, alfabetização em árabe e forte identidade religiosa. Viviam sob constante vigilância e repressão das autoridades coloniais e dos senhores de escravos, que temiam a influência que esses indivíduos poderiam exercer sobre a população escravizada. Manter vivas suas tradições era um meio de organização da resistência a partir da luta contra o apagamento de suas identidades e cultura.
A Bahia, naquele período, era também um dos maiores centros de tráfico escravo do Brasil, com cerca de 80% da população negra, sendo 40% destes escravizados. O povo negro mantinha vivas não apenas suas tradições culturais e religiosas, mas as memórias de resistência que construía, que se combinavam em uma efervescência social e política. O clima era de tensão constante, com frequentes rumores de conspirações e revoltas. A Revolta dos Búzios, em 1798, e a Independência do Haiti, em 1804, serviram como precedentes inspiradores para os escravizados em Salvador, mostrando que a insurreição era possível.
A Revolta dos Malês foi cuidadosamente planejada. Os líderes malês, principalmente muçulmanos de origem nagô, haussá e mahi, organizaram o levante com o objetivo de estabelecer um governo islâmico em Salvador, libertar os escravizados e, possivelmente, expandir a insurreição para outras regiões. O movimento contou com a participação de aproximadamente 600 homens, entre escravizados e libertos. A insurreição estava marcada para o dia 25 de janeiro de 1835, durante a madrugada, dia da Lailat al-Qadr, Noite da Glória, festa que rememora a revelação do Corão à Maomé. Habilmente calculada, a organização da revolta contou com estratégias como a distribuição de panfletos em árabe, armando-se de sua tradição como ferramenta de organização de luta.
Contudo, o plano foi descoberto antes de sua execução completa. Denúncias feitas por outros escravizados e libertos, por coação ou por medo das represálias, chegaram às autoridades, que rapidamente se mobilizaram. Na madrugada do dia 25 de janeiro, enquanto os líderes malês se reuniam no porão da casa de Manuel Calafate, foram surpreendidos pelas forças policiais e militares, que os reprimiu fortemente.
Mesmo surpreendidos, os malês resistiram bravamente, conseguindo tomar algumas ruas e pontos estratégicos da cidade. A batalha, em diferentes pontos da cidade, estenderam-se por cerca de quatro horas. Na última batalha, em um local chamado Água de Meninos, em Salvador, os revoltosos foram derrotados. Com a derrota da insurreição, além dos 70 mortos, os líderes do movimento foram presos, torturados e, em muitos casos, executados. Outros insurgentes foram condenados à morte, a castigos físicos ou deportados para a África.
Apesar de sua derrota, a Revolta dos Malês foi um marco na luta contra a escravidão no Brasil. Foi uma demonstração de força da organização e da resistência negra, articulada a partir da luta pela preservação de suas tradições religiosas e culturais. A revolta, mais uma vez, desafiou o mito da passividade dos escravizados e mostrou que, mesmo sob forte violência, repressão e apagamento cultural, havia movimentos ativos de resistência.
Os malês, com o domínio da escrita árabe, não só mantinham registros de suas práticas religiosas, mas também desenvolviam estratégias e articulavam suas ideias de uma forma que escapava à compreensão das autoridades coloniais. Este conhecimento foi fundamental na organização da revolta e serviu de exemplo para outras formas de resistência. A partir da preservação de sua identidade cultural, foi possível aos malês articular uma luta estrutural contra o sistema colonialista e escravista, organizando, a partir de seus costumes, credo e tradição, a resistência.
A Revolta dos Malês deixou um impacto duradouro e aumentou a fratura na sociedade colonial baiana e brasileira. Após o levante, as autoridades intensificaram a repressão não apenas contra os muçulmanos, mas contra todas as manifestações culturais e religiosas africanas. O medo de novas revoltas levou a uma vigilância ainda maior sobre os escravizados e libertos, e as práticas religiosas africanas foram mais duramente reprimidas. No entanto, apesar de aumentada a repressão, o episódio se tornou também memória de organização e luta, chacoalhando a estrutura social escravagista numa disputa aberta pelo poder.
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http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212959626_ARQUIVO_artigoanphu2008.pdf