
O que acontece quando o negacionismo climático e a misoginia se cruzam?
Uma entrevista com Cara Daggett, que cunhou o termo "petro-masculinidade", para discutir o que ele indica para um possível segundo governo Trump
Foto: Cara Daggett
Cara Daggett, professora associada de ciência política na Universidade Virginia Tech, cunhou o termo “petro-masculinidade” em um artigo publicado em 2018. Ela usou o termo para descrever a ascensão de movimentos autoritários no hemisfério ocidental e como esses movimentos eram moldados pela negação das mudanças climáticas e pela misoginia, em um apelo aos homens que se sentiam deixados para trás pela sociedade.
Na época, Donald Trump estava no poder há dois anos. Para Daggett, a mensagem “Make America Great Again” de Trump evocava nostalgia de um tempo em que famílias tradicionalmente estruturadas viviam em subúrbios em ascensão econômica, ancorados em energia barata e nos empregos derivados dela, ameaçados pelos esforços de enfrentamento das mudanças climáticas, racismo ou igualdade de gênero.
Segundo Daggett, os combustíveis fósseis deixaram de ser apenas uma fonte de energia e passaram a estar profundamente ligados à identidade americana. Para homens conservadores, em especial, isso é essencial para o retorno a uma sociedade governada por homens, em detrimento não apenas das mulheres, mas também do meio ambiente.
The 19th conversou com Daggett, atualmente pesquisadora sênior no Instituto de Pesquisa para Sustentabilidade em Potsdam, Alemanha, sobre sua visão atual da petro-masculinidade e o que ela sinaliza para um possível segundo governo Trump, que promete reverter proteções ambientais, aumentar a produção de combustíveis fósseis e desafiar os direitos de gênero.
The 19th: Para quem não está familiarizado com o termo “petro-masculinidade”, o que essa retórica de domínio do petróleo e gás tem a ver com gênero e identidade?
Daggett: Pensei nesse termo após a eleição de Trump em 2016, ao notar um apoio simultâneo a combustíveis fósseis, negação climática e misoginia. Esses problemas geralmente eram tratados como separados, mas estão conectados.
Venho de uma formação ecofeminista crítica, que conecta a exploração do mundo natural à exploração de trabalhos realizados por povos colonizados e mulheres ou corpos feminilizados. Esse processo, historicamente, se desenvolveu sob o capitalismo colonial. Com isso, entendi que essas questões não são coincidências, mas caminham juntas. Nos Estados Unidos, por exemplo, isso pode ser visto na desvalorização do trabalho de cuidado, da mesma forma que a natureza é vista como um recurso gratuito.
Essas premissas estão na base da economia capitalista. A separação dessas questões — esfera econômica versus identidade — dificulta a percepção de que elas realmente estão interligadas.
Como você acha que isso influenciou as eleições de 2024? Por que acha que ressoou com os eleitores?
A petro-masculinidade foi mais implícita desta vez. Misoginia estava mais evidente, mas mudanças climáticas não estavam no foco como em 2020. Empresas petrolíferas ainda apoiaram Trump com uma lista de políticas desejadas, enquanto Kamala Harris não apresentou uma mensagem climática forte e até abraçou o fracking.
O Projeto 2025 teve quatro pilares: dois deles relacionados à família tradicional e aos combustíveis fósseis. Essa conexão reflete uma defesa reacionária de processos de dominação de gênero e raça e da exploração do mundo natural.
Você pode falar mais sobre essa relação entre estrutura familiar tradicional e expansão de combustíveis fósseis?
A energia e seu acesso ainda direcionam o poder global. Há nostalgia em torno do poder dos combustíveis fósseis. A direita entende a ameaça existencial que a crise climática representa e responde com negação e resistência à mudança.
Um exemplo é o estilo de vida suburbano do século 20, baseado em combustíveis fósseis e automóveis, criando espaços domésticos brancos, protegidos da diversidade. Isso reflete divisões entre casa e trabalho, homem provedor e esposa dona de casa, e um mundo movido a energia barata.
Como Elon Musk se encaixa nesse contexto, sendo um defensor de carros elétricos e um dos principais apoiadores de Trump?
Musk exemplifica uma “masculinidade eco-moderna”, que vê soluções tecnológicas como forma de estabilizar o status quo. Ele sempre demonstrou uma masculinidade tóxica, como na apresentação do Tesla Cybertruck, que parecia um veículo militar.
Musk e Trump compartilham uma visão de manutenção de um sistema extrativo e expansivo, seja com combustíveis fósseis ou energia renovável, sem realmente desafiar a cultura de crescimento contínuo.
Quais são as implicações para mulheres e pessoas LGBTQ+ nessa retomada da negação climática e expansão de combustíveis fósseis?
A crise climática impacta mais as mulheres, especialmente as trabalhadoras e mulheres negras, devido às responsabilidades desproporcionais com cuidados básicos. Além disso, nos EUA, a retórica violenta, normalização do assédio e ataques a pessoas trans e gays estão se tornando parte de uma guinada ao fascismo.
O que você espera de um segundo governo Trump diante da piora da crise climática?
Vejo um cenário sombrio nos EUA. O primeiro governo Trump tentou reverter regulamentações ambientais e expandir combustíveis fósseis. Agora, será ainda pior. Apesar disso, estados e cidades americanas têm liderado esforços por justiça climática.
As ideias mais inspiradoras vêm de movimentos sociais, povos indígenas e do Sul Global, que devem liderar as mudanças necessárias.