
Eric Cantona, Vélez Sarsfield e a luta antifascista no futebol argentino
O futebol, em suas origens e em todo o mundo, é um espaço formado principalmente por trabalhadores
O futebol é um fenômeno que se estende além das quatro linhas. Mais do que um jogo de 90 minutos, o esporte tem se apresentado como um espaço legítimo para disputas socioculturais, sejam elas de gênero, sexualidade, étnico-raciais, econômicas e/ou políticas. Não é de se estranhar, portanto, que o futebol seja palco de ações, individuais ou coletivas, que oferecem resistência às desigualdades e aos avanços fascistas.
Entre as ações individuais, gostaria de destacar que no dia 25 de janeiro foi comemorado o 30º aniversário do famoso chute voador que o jogador Eric Cantona deu em um torcedor que lhe lançava insultos xenófobos. Quanto às mobilizações coletivas, escolho as ações de um grupo de torcedores argentinos, membros da torcida organizada Vélez Antifascista, que, durante o ano de 2024, realizaram uma série de práticas para enfrentar o avanço ultraliberal do governo de Javier Miles.
Mas como é possível que esses dois universos, o de Eric Cantona e o do coletivo de torcedores do Vélez Antifascista, se cruzem? Para isso, precisamos voltar no tempo e apresentar partes dessas histórias:
Era o dia 25 de janeiro de 1995, e os jogadores do Crystal Palace e do Manchester United estavam entrando em campo para a 25ª rodada da Premier League. Em um incidente durante a partida, o meio-campista francês Eric Cantona, que jogava pelo United na época, cometeu uma falta grave em Richard Shaw e foi expulso pelo árbitro.
Na saída, a caminho dos vestiários, Cantona realizou uma façanha que pode ser considerada uma das mais memoráveis de sua carreira. Ele correu e deu um chute voador no torcedor Matthew Simmons, que estava lançando insultos xenófobos contra o jogador das arquibancadas: “Volte para a França, seu francês filho da puta”, gritou Simmons antes de ser atingido pelo chute voador, seguido de socos.
Após o episódio, que inclusive nos rendeu a clássica foto, Cantona foi alvo de severas punições. Primeiro, ele foi condenado a duas semanas de prisão, uma sentença que acabou se transformando em 120 horas de serviço comunitário. Depois, foi suspenso dos gramados por nove meses. No final, ele foi obrigado a pagar uma multa de £20.000.
Mais tarde, descobriu-se que Matthew Simmons estava ligado a partidos de extrema direita e fascistas, como a Frente Nacional e o Partido Nacional Britânico. Esses partidos, por sua vez, negavam o Holocausto, defendiam a supremacia branca e propunham o fim da imigração para o Reino Unido. Além disso, apenas alguns anos antes do icônico chute voador, em 1992, Simmons havia sido condenado por agredir um atendente de posto de gasolina, um imigrante nascido no Sri Lanka, com uma chave de fenda.
Com o passar do tempo e a revelação do passado de Simmons, Eric Cantona sempre insistiu que nunca se arrependeu do chute voador. Em uma de suas declarações, ele chegou a dizer: “Eu deveria ter batido com mais força. Não me arrependo, foi uma sensação ótima.
Quando perguntado sobre o melhor momento de sua carreira, Cantona respondeu sem hesitar: “Foi quando dei um chute de kung fu em um hooligan, porque esse tipo de gente não tem nada que fazer em um jogo. Acho que isso é um sonho para algumas pessoas”. “As pessoas gostam. É um chute para esse tipo de pessoa. Então, eu fiz isso por elas, para fazê-las felizes. E elas ainda falam sobre isso até hoje. Já vi muitos jogadores marcarem gols e todos eles conhecem essa sensação. Mas isso, pular e chutar um fascista, não é algo que se encontra todos os dias.”
O fato é que Cantona se tornou um símbolo global da luta antifascista no futebol, e seu chute voador se tornou um dos momentos mais emblemáticos da história do esporte.
No início de junho de 2024, pouco menos de dois meses depois de me mudar para Buenos Aires, Argentina, fui convidado pela minha supervisora de pós-doutorado, Verónica Moreira, para acompanhar o trabalho de um coletivo de torcedores antifascistas do Club Atlético Vélez Sarsfield. Rapidamente aceitei o convite e, no dia 18 daquele mesmo mês, após uma hora de viagem de transporte público, chegamos à Avenida Lope de Vega, onde encontramos os torcedores organizados em uma sede do Partido Comunista. Conversando com Mauro Villaruel, um membro do coletivo, ele me explicou rapidamente a origem da organização.
“O coletivo e grupo Antifascista Vélez surgiu em 2018, a partir de um grupo de torcedores do Vélez que começaram a se reconhecer como militantes durante o governo presidencial de Mauricio Macri (2015-2019). O objetivo, na época, era formar um grupo de torcedores para lutar contra o fascismo e o capitalismo. Então surgiu uma figura esportiva, José Luis Chilavert, que queria privatizar os clubes de futebol na Argentina, incutir o ódio racial e separar a classe trabalhadora. Foi então que os torcedores do Vélez decidiram organizar o coletivo Vélez Antifascista, sabendo que outros coletivos já existiam em outros clubes. Assim, o Vélez Antifascista foi formado a partir de dias de luta, protestos de rua e luta contra a repressão, além de buscar a libertação de companheiros que estavam presos”.
Naquela noite, Verônica e eu pudemos ver os torcedores cozinhando, embalando e distribuindo marmitas para os vizinhos do bairro. A ação, soube depois, havia sido divulgada anteriormente na página do Instagram (@velezantifacista), a partir de um cartão que dizia: “Comidas Solidarias: Todas as terças-feiras, a partir das 20h, entregamos refeições e assistência aos moradores de rua e a qualquer pessoa que precise de um prato quente de comida.”
Na publicação seguinte, na mesma rede social, o grupo de torcedores pediu doações de verduras, alimentos não perecíveis, panelas e talheres descartáveis e água mineral para continuar com o trabalho que realizam todas as terças-feiras. Para Mauro, “o objetivo da Comida Solidária é continuar apoiando a solidariedade e o trabalho no bairro, que vai além das arquibancadas. É uma forma de ver como os torcedores podem se organizar e ter empatia. Também mostra a miséria do governo quando esconde comida ou quando não fornece comida às pessoas que precisam. Nossa resposta foi organizar e levantar os recursos necessários para poder ajudar as famílias necessitadas. Durante as ações da Comida Solidária, nosso coletivo cresceu, e isso foi o mais importante, pois conseguimos atingir nosso objetivo, tanto no bairro quanto nas arquibancadas”.
As ações da Comida Solidária continuaram por algum tempo até que a sede do Partido Comunista, onde se reuniam semanalmente para preparar a comida, não pôde mais ser usada pelos partidários antifascistas de Vélez.
Em 23 de setembro de 2024, Verônica e eu fomos novamente convidados a nos juntar aos nossos amigos Mauro, sua companheira Fiona e outros membros do Velez Antifacista. O convite era para que todos nós assistíssemos juntos a um jogo do Vélez Sarsfield. E lá fomos nós.
Acho que tivemos sorte, pois o Vélez venceu o Club Estudiantes de La Plata por 2 a 0. Em um determinado momento, conversando novamente com Mauro, perguntei-lhe como ele percebia a conexão entre o futebol e a luta contra o fascismo.
“O que acreditamos no Vélez Antifascista é que o futebol, em suas raízes e globalmente, é um espaço formado principalmente por trabalhadores. Portanto, temos o sistema capitalista que explora os trabalhadores e também temos o futebol, que é um esporte que deve ser vivido de forma coletiva e horizontal. Cientes disso, de que o futebol está presente na formação da classe trabalhadora e de que nós também somos da classe trabalhadora, sentimos a necessidade de continuar a luta, com ideias e com a vontade de continuar criando e lutando contra o fascismo e o capitalismo. Sabemos o que significa compartilhar em todos os campos da vida e em toda a classe trabalhadora podemos encontrar solidariedade. Infelizmente, algumas pessoas se esquecem disso, mas outras não. Portanto, o futebol é algo popular, é algo para o povo, para a classe trabalhadora. É claro que mantemos o respeito por nossos rivais, sua cultura, seu bairro, sua história de vida. E, acima de tudo, sabemos que é por meio do antifascismo que podemos abraçar todas as lutas pelo bem comum do povo”.
A partir dessa experiência com os torcedores antifascistas do Vélez, ficou claro que os torcedores não se limitam ao apoio incondicional dentro dos estádios; suas ações vão além das arquibancadas e são fortalecidas nas ruas, onde a solidariedade é traduzida em ações concretas. As Refeições Solidárias, organizadas pelos torcedores, são um exemplo de como o futebol pode servir como uma ferramenta de mobilização popular. Em tempos de aprofundamento da desigualdade e de políticas de austeridade que aumentam a vulnerabilidade social, os membros do coletivo se unem para garantir refeições quentes àqueles que mais precisam. O gesto de cozinhar e distribuir marmitas não é um ato de caridade, mas uma declaração política: uma resposta coletiva à negligência do Estado e à marginalização das classes trabalhadoras. Para os torcedores antifascistas do Vélez, essa rede de solidariedade não apenas alimenta os corpos, mas também fortalece os laços comunitários e cria espaços de resistência dentro e fora do campo.
O futebol sempre foi palco de disputas e os torcedores mostram que ele pode ser um instrumento ativo de transformação social. Assim como Eric Cantona, que desafiou a xenofobia e o fascismo, torcedores como o Vélez Antifacista se recusam a ver o esporte como um espaço apolítico.
Para Mauro, Fiona e os demais torcedores, o futebol pertence ao povo e deve ser defendido contra tentativas de comercialização e instrumentalização por setores reacionários. O mesmo espírito combativo que se manifesta nas arquibancadas também se traduz em ocupações de rua, protestos e ações comunitárias. A luta contra a precarização da vida e o avanço das políticas de exclusão se dá tanto nos estádios quanto nos bairros populares, mostrando que o futebol, longe de ser apenas um espetáculo, continua sendo um território de disputa e resistência.
Para concluir este texto, voltaremos ao dia 25 de janeiro de 2025, quando o Vélez Antifascista fez uma postagem em sua página do Instagram em homenagem aos 30 anos do icônico chute voador de Eric Cantona.
“Feliz 30º aniversário do chute voador mais importante da história do futebol e do antifascismo. Para nós, torcedores, que carregamos esse momento glorioso em nossos corações, esse histórico chute voador foi a justiça, onde nos vemos refletidos e também identificados. Hoje serve de inspiração para lutarmos contra o fascismo atual que vivemos sob o governo desse filho da puta (Javier Milei), para nos organizarmos nos estádios, nas ruas, nos bairros e onde pudermos. “Porque o fascismo não se discute, se destrói”.
Além do poderoso texto compartilhado pelos torcedores antifascistas do Vélez, duas fotos da publicação chamam a atenção.
Na primeira foto, Eric Cantona pode ser visto vestindo a camisa do Club Atlético Vélez Sarsfield. A foto, tirada em 2001, mostra o treinamento para o jogo de despedida de Diego Maradona, que ocorreu em 10 de novembro do mesmo ano. Além de Cantona, outros craques também vestiram a camisa do Vélez, como Ciro Ferrara, Carlos “El Pibe” Valderrama, Hristo Stoichkov, René Higuita e Careca.
A segunda foto é uma tatuagem em preto e branco na perna de Mauro Villaruel, retratando a cena icônica de Eric Cantona dando o chute voador contra o torcedor fascista. A imagem, por si só, reforça a ideia de como esse episódio transcendeu o esporte e se tornou um marco de resistência e luta política contra o fascismo.
A postagem do Vélez Antifacista no Instagram ( @velezantifacista ) resume como o futebol e a política se entrelaçam nas arquibancadas e nas ruas. Além de celebrar um momento histórico no esporte, a mensagem e as fotos reafirmam o futebol como um espaço de resistência e confronto ao fascismo, estabelecendo um vínculo entre o gesto de Cantona contra um torcedor de extrema direita e a luta do Vélez Antifacista contra o avanço do ultraliberalismo e das políticas autoritárias na Argentina. A publicação ecoa o sentimento coletivo de que a luta antifascista não é um debate abstrato, mas uma necessidade urgente, vivida na vida cotidiana, nas arquibancadas, nos bairros e em todos os espaços onde a organização popular está presente e é necessária.
Como dissemos na primeira linha deste texto, o futebol é um fenômeno que se desenvolve além das quatro linhas. Afinal, ele é uma trincheira de luta, um espaço onde a memória, a ação política e a resistência podem ser organizadas e expressas coletivamente.