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O Papa que dasafiou a extrema direita mundial
Antifascismo

O Papa que dasafiou a extrema direita mundial

As posições de Francisco sobre imigração, história, economia e meio ambiente, e sua recusa em colocar a Igreja a serviço das guerras culturais, fizeram dele um inimigo na direita

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Via El País

Tempo de leitura: 7 minutos.

Francisco, cujo papado começou em 2013 e terminou na segunda-feira com sua morte, testemunhou do mais alto posto da Igreja a ascensão de movimentos nacionalistas e xenófobos de extrema direita em todo o Ocidente. Diante desse fenômeno definidor do nosso tempo, sua posição foi clara e inequívoca: firmemente contra. Sua oposição se estendeu não apenas à discriminação contra imigrantes, mas também aos excessos do neoliberalismo, o que levou muitos conservadores a rotulá-lo como um papa alinhado com a esquerda.

Embora tenha continuado a criticar o aborto e a se opor ao reconhecimento igualitário de casais heterossexuais e do mesmo sexo – que, de acordo com a doutrina da Igreja, não podem formar uma “família natural” – o pontífice argentino também resistiu à pressão para transformar a Santa Sé em uma ponta de lança nas chamadas “guerras culturais” contra o “lobby LGBTQ+” e a “ideologia de gênero”. Essa posição lhe rendeu hostilidade aberta de figuras proeminentes da extrema direita e até mesmo críticas de líderes da chamada direita moderada.

O Papa enfrentou mais do que apenas críticas em seu país natal, a Argentina – ele foi alvo de insultos diretos. O presidente argentino Javier Milei, durante seus primeiros dias como um polemista ultraliberal entrando na vida política, frequentemente fazia de Francisco o alvo de seus ataques.

Em sua conta no X (então Twitter), Milei atacou em 2017, mandando o Papa “se foder” e chamando-o de “esquerdista nojento” por defender o conceito de “justiça social”, que ele rejeita veementemente. “Seria bom se você começasse a distribuir a riqueza do Vaticano para os pobres. Seu pedaço de merda”, escreveu ele, dirigindo-se diretamente ao pontífice. Um ano depois, ele intensificou sua retórica, classificando Francisco como um “filho da puta esquerdista” e chamando-o de “representante do mal” dentro da Igreja.

Na Itália, Matteo Salvini, líder do partido de extrema direita Lega, tem sido o adversário político mais proeminente de Francisco. Em 2019, durante o mandato de Salvini como Ministro do Interior e no auge de sua influência política, as tensões aumentaram. Naquele ano, um cardeal polonês próximo a Francisco entrou clandestinamente na sala de utilidades de um prédio ocupado onde 400 pessoas estavam vivendo sem eletricidade – e restaurou a energia. O ato enfureceu Salvini, que viu o cardeal se tornar um herói da esquerda. “Enviaremos ao Vaticano a conta de 300.000 euros que o prédio devia”, disse Salvini. Pouco tempo depois, ele foi alvo de uma das observações incisivas do Papa: “Um político não deve semear o ódio e o medo.”

Mais tarde, no mesmo ano, quando Francisco posou para uma foto usando um crachá que dizia “Vamos abrir os portos”, em apoio aos migrantes, Salvini rebateu: “Ele cuida das almas; eu cuido dos cinco milhões de italianos pobres. Eu abro os portos somente para aqueles que têm permissão”.

César e Deus

Os líderes da extrema-direita sempre citaram a frase bíblica “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” para se opor ao Papa Francisco quando suas mensagens desafiavam suas políticas.

Na França, a líder do Reagrupamento Nacional, Marine Le Pen, citou a frase no que foi seu confronto mais importante com o pontífice. Ela fez isso em 2021, depois que o Le Nouvel Observateur informou que o papa estava “preocupado” com a ascensão da extrema direita.

“Estou convencida de que muitos fiéis ficariam encantados se o papa se concentrasse no que acontece nas igrejas e não nas urnas”, acrescentou Le Pen, que frequentemente encobre sua retórica islamofóbica com apelos à herança cristã da França – uma causa que o pontífice nunca apoiou.

Seu rival de extrema direita, Éric Zemmour, foi além: “Mas o que o Papa quer? Será que ele quer que a Europa cristã, o berço do cristianismo, se torne uma terra islâmica? Gostaria que ele explicasse isso?”, perguntou ele em 2023.

Na Espanha, Francisco tem estado na mira da Vox. Em 2020, em meio ao debate sobre o salário mínimo, o Papa expressou seu apoio a uma renda universal. O líder da Vox, Santiago Abascal, respondeu retirando-lhe a autoridade papal: “A opinião do cidadão Bergoglio”, disse ele, parecia “respeitável, como a de qualquer outro cidadão”. “Mas eu não compartilho dela”, acrescentou Abascal, afirmando que ele não comenta “se a comunhão deve ser dada ou não” e, na mesma linha, o bispo de Roma não deve se intrometer em questões políticas. “Dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”, concluiu.

O antigo porta-voz da Vox, Iván Espinosa de los Monteros, respondeu em 2019 a uma das mensagens do Papa contra a rejeição de estrangeiros dizendo: “Acho ótimo que o papa receba no Vaticano tantos imigrantes ilegais sem documentos quanto quiser”. Mas, ele acrescentou, o papa não deve dizer a outros estados soberanos o que fazer.

Dois anos depois, em 2021, ele criticou “um chefe de estado do Vaticano, de nacionalidade argentina”, por pedir desculpas pelos “pecados” cometidos durante a conquista das Américas. Esse pedido de perdão provocou irritação além da Vox.

A primeira-ministra de Madri, Isabel Díaz Ayuso, do conservador Partido Popular (PP), considerou “surpreendente” que “um católico de língua espanhola” falasse dessa forma sobre “um legado que trouxe o espanhol” e o “catolicismo” para o continente americano.

O ex-primeiro-ministro espanhol, José María Aznar, também se manifestou sobre a controvérsia: “Não vou me juntar às fileiras dos que pedem perdão”.

Da imigração à Amazônia

Os últimos comentários públicos do Papa foram feitos no domingo, quando ele se manifestou contra o “desprezo pelos imigrantes”. Como ele fez esse comentário depois de se encontrar com o vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, muitos o interpretaram quase unanimemente como uma repreensão ao governo Trump – uma de muitas. A imigração foi, afinal, a questão que mais frequentemente causou conflitos entre o bispo de Roma e os líderes da extrema direita. Mas não foi a única.

A gama de questões era ampla. Em 2020, ele atraiu a ira do então presidente brasileiro Jair Bolsonaro depois de postar nas mídias sociais: “Sonho com uma região amazônica que lute pelos direitos dos pobres, dos povos originários e dos menores de nossos irmãos e irmãs, onde suas vozes possam ser ouvidas e sua dignidade promovida.”

“A Amazônia é nossa”, respondeu Bolsonaro, negando que a floresta pertença, como sustenta o Papa, a toda a humanidade.

Um detalhe ilustra o quanto Francisco foi um obstáculo para a extrema direita. Steve Bannon, ex-estrategista e ideólogo do trumpismo, já o havia identificado como um inimigo a ser enfrentado durante o primeiro mandato de Trump. Em 2017, o The New York Times informou que Bannon, enquanto atuava como conselheiro de Trump, estava forjando alianças com alguns dos críticos internos do Papa no Vaticano, incluindo o cardeal americano Raymond Burke, em um esforço para minar o líder da Igreja. Dois anos depois, Bannon reclamou à NBC News sobre um Papa que, segundo ele, está constantemente “colocando todas as falhas do mundo nesse movimento nacionalista populista”.

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