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Brasil canibal. Entre a Bossa Nova e a extrema-direita
Cultura e Esporte

Brasil canibal. Entre a Bossa Nova e a extrema-direita

Confira a resenha do livro "Brasil canibal...", de Florencia Garramuño.

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Tempo de leitura: 8 minutos.

Via RC

Nas últimas duas décadas, a história política brasileira adquiriu um interesse crescente pelas ciências sociais e políticas na Argentina, talvez como uma forma elíptica de entender as vicissitudes locais, sob os holofotes de um país em crescente expansão e ressonância internacional desde a chegada do governo do Partido dos Trabalhadores e da figura de Lula da Silva à presidência.[1] A vocação de colocar as vicissitudes lusitanas do país vizinho em palavras espanholas levou até mesmo à produção de uma enorme coleção de traduções de obras brasileiras, numa tentativa de oferecer trechos da história portuguesa do país vizinho. A vocação de colocar em palavras espanholas as vicissitudes lusitanas do país vizinho levou inclusive à produção de uma enorme coleção de traduções de obras brasileiras, numa tentativa de oferecer trechos para construir uma biografia ordenada ou um “caminho das pedras “[2] que permitisse atravessar a multiplicidade daquele país. Neste contexto, o aparecimento do livro de Florencia Garramuño, Brasil caníbal…, é uma tentativa bem sucedida de oferecer lugares ou destinos para ancorar neste diversificado e complexo arquipélago da história brasileira dos séculos XX e XXI, em vez de oferecer uma bússola para um trânsito apolônio que fecha os sentidos ou ignora os cantos de sereia que transpiram através da Odisséia brasileira.

Esta publicação mistura abordagens de estudos culturais e literatura, historiografia sobre o passado recente e sociologia, observações dos participantes e a perplexidade da experiência na primeira pessoa. É claro, porém, que estas observações estão escritas no meio de um presente que a deixa inquieta com a radicalização e a chegada de um governo pós-autoritário de Jair Bolsonaro, por um lado, e a proliferação de arestas que a levaram a se apaixonar pelo Brasil como um enigma, por outro. Escrita com uma caneta leve, voraz, sedutora e profusa, ela oferece uma viagem panorâmica, complexa e leve pela evolução deste país desde sua configuração de identidade como um Estado-nação até sua perplexidade atual como uma sociedade em crise.

Assim, Brasil caníbal… é leitura essencial para aqueles que procuram abrir a caixa de Pandora do país vizinho, ansiando pela esperança de um futuro mais auspicioso, na esperança de um presente mais benigno, baseado na recuperação de um passado tropical e antropófago; mas, sobretudo, este livro é leitura necessária para aqueles que têm a vocação de compreender a magnitude de um território quase continental no itinerário de seus últimos duzentos anos. Em outras palavras, este texto é uma porta necessária para entender, interpretar e avaliar (ou mesmo comparar implicitamente com seus pares latino-americanos) o Brasil como a experiência hipnótica de um caleidoscópio em movimento. Para isso, a estrutura do texto de Garramuño está organizada em cinco seções, que recuperam fragmentos publicados anteriormente pelo autor e inúmeras contribuições inéditas que tecem juntos e condensam os passos de uma leitura que é, nas palavras do professor da Universidade de San Andrés na Argentina, um caminho para um “Brasil para iniciantes”.

O capítulo um (Uma Cultura nos Trópicos), apresenta a contradição inerente à história do Brasil, que pode ser imaginada tanto como um oásis ou paraíso – como descrito por Pero Vaz de Caminha – como também como uma terra de desperdício de civilização ou trópicos tristes, especialmente no marco do Iluminismo do século XVIII. Ao longo deste caminho, a questão do ser e da identidade é um prisma que se desenvolve com esplendor durante a nascente república no final do século XIX e início do século XX, fundamentalmente pela mão e caneta de ensaístas como Euclides da Cunha, Gilberto Freire e Sergio Buarque de Holanda, entre outros. Este novo Brasil do século XX é um terreno em que coexistem legados coloniais e imperiais e são debatidos com a alma selvagem e antropófaga do indígena, por um lado, e as marcas e desenhos de uma sociedade de escravidão que se liberta em manifestações como o candomblé, o batuque ou simplesmente foge para terras como a República de Palmares, por outro.

Toda essa superposição dantesca de fragmentos multiformes que atravessam a história do Brasil em múltiplas direções até o século XX pode até ser vista retratada no segundo capítulo deste livro (O Barroco), que dá conta de manifestações culturais como a “Caravana Modernista”, o “Manifesto Antropófago”, entre outros, que nas primeiras décadas do século XX volta à semente do momento barroco brasileiro (com seu esplendor nas cidades de Minas Gerais), para mostrar na carne a superposição de contradições que atravessa o país.

A terceira seção (Cultura popular e cultura erudita) transfere o debate da civilização ou da barbárie em que foi estabelecido no início do século XX para um registro cultural no qual música, samba e carnaval são os emblemas deste novo díada brasileiro. Para o autor, a mistura de danças de salão européias com a musicalidade de uma sociedade de escravos que se distanciou do passado imperial deu origem no Rio de Janeiro ao Samba, que se tornou, a partir das primeiras décadas do século XX, uma “efígie que irradia […] a essência nacional” (p. 66). No entanto, Garramuño mostra como esta fina mistura do sagrado e do profano, com características europeias, a marcha indo-americana e o pulso africano, é reeditada no carnaval, como uma expressão com um ajuste particular para cada cidade, mas universal para o país como um terreno de identidade. Finalmente, o autor evoca o movimento da Música Popular Brasileira (MPB) em geral, e da Bossa Nova em particular, para mostrar como uma vocação telúrica é tecida com uma pretensão global, uma inovação musical local com a capacidade de ser exportada internacionalmente.

Na quarta seção (Modernidade e inserção internacional) o autor traça o caminho de duas expressões estéticas de enorme valor, como o Manifesto Antropófago dos anos 20 e o Tropicália dos anos 60, que, embora se proponham a encontrar a identidade brasileira, o fazem tendo em mente o outro, o estrangeiro ou aqueles que permanecem perplexos fora de si. Se Antropofagia “…implica incorporação, desmembramento, reinterpretação e invenção” (p. 92), Tropicalia implica “…inscrever as conquistas experimentais brasileiras em pé de igualdade com o debate internacional [a fim] de escapar da exotização do brasileiro” (p. 94). Ambos os movimentos têm a particularidade de serem momentos “corais” no mundo da cultura, já que convergem múltiplas expressões artísticas como cinema, teatro, literatura, música, arquitetura, entre outras. O ícone desta experiência endógena, mas inscrita em uma modernidade global, é a construção de Brasília por Juscelino Kubistchek entre 1954 e 1960. Embora a nova capital implicasse a passagem de um Brasil utópico para um futuro possível, o autor recupera uma questão semelhante à colocada por Bertolt Brecht quando se perguntou: “Para onde foram os pedreiros na noite em que a muralha chinesa foi terminada?” Parte da resposta é encontrada neste caso na favela, não apenas como o epicentro da superlotação e da provação demográfica, mas também como um laboratório para novas expressões culturais e políticas como as de Carolina Maria de Jesus ou Marielle Franco.

O último capítulo (O país do futuro e a promessa que não foi) dá conta do caminho histórico e político desde o golpe de Estado de 1964, passando pelo sonho de “outro Brasil possível” que durante os anos 80 e 90 foi moldado pelo projeto político do Partido dos Trabalhadores, passando pelo tumultuoso despertar que envolveu o impeachment da Presidente Dilma Roussef ou a prisão de Lula da Silva, até finalmente chegar ao alvorecer do pesadelo que começou com a chegada de Bolsonaro ao comando político da República Federativa do Brasil. Nesta última seção, especialmente quando nos aproximamos do presente, a voz em primeira pessoa da autora começa a se fazer sentir, não apenas por ter sido um flaneur deste período de sua história, mas também por seu esforço para não “largar a mão do Brasil” em um momento em que, como diz o parágrafo final deste livro, o ódio ocupa a cena e o amor é o único “descanso da loucura”.

Brasil caníbal… é escrito a partir da perplexidade crítica da época atual brasileira, com o domínio de alguém que conhece dos rizomas da cultura as pulsações do político, econômico e social, razão pela qual é uma entrada sutil e exuberante para um terreno que combina: a luz e a sombra de um passado colonial, a esperança e a expectativa de uma herança escravista, a rebeldia e os estigmas de uma história ameríndia, a civilização e a barbárie de uma nova república, o folclore e a modernidade de uma cultura em construção, a chama do futuro e as cinzas do passado em um presente que deslumbra pelo fogo.

Notas

1 Esta vocação para entender e interpretar o Brasil comparativamente pode ser vista em trabalhos publicados recentemente como: Carlos Álvarez (2003); Marcelo Gullo (2005); Alejandro Grimson (2007); Mario Rapoport e Eduardo Madrid (2011); Daniel Amicci (2012); Amilcar Salas Oroño (2012); José Natanson (2014); Carlos Milani et al. (2014); Artiz Recalde (2016); Vicente Palermo (2016, 2018); Dolores Rocca Rivarola (2019); Juan Lucca, Esteban Iglesias e Cintia Pinillos (2019); entre outros.

2 Na gíria brasileira, “caminho das pedras” se refere a uma maneira mais rápida e menos familiar, exceto para o experiente, de desvendar uma situação ou refazer um caminho. Ver Vicente Palermo & Rafael Mantovani (2008).

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