Por Projeto Brasil Real é um País que Luta
Via Brasil real é um país que luta
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Foto: Prefeitura do Rio
Mais de cem anos depois da Revolta da Chibata, o racismo das forças armadas brasileiras continua forte e se expressou nas declarações recentes do almirante Marcos Sampaio Olsen, chefe da Marinha, que se indignou com a homenagem feita ao marinheiro negro João Cândido Felisberto, filho de escravizados e líder da Revolta, com sua inscrição no livro dos Heróis da Pátria.
A homenagem, mais do que uma simples formalidade oficial, representou um acerto de contas histórico com o heróico movimento de 1910 que chamou atenção para as péssimas condições dos marinheiros negros e os castigos físicos que continuavam sendo aplicados na Marinha mesmo depois de duas décadas do fim da escravidão. Os rebeldes tomaram grandes navios de guerra ancorados na Baía de Guanabara e apontaram seus canhões para a sede do poder da Primeira República, a então capital no Rio de Janeiro.
A Revolta
Entre suas reivindicações estavam, além do fim dos castigos através da famigerada chibata, melhores salários e condições de trabalho e a retirada de serviço de oficiais violentos. Em suas mensagens, se declararam cidadãos brasileiros, e não escravos, e expuseram toda a hipocrisia do regime brasileiro da época, tendo à frente o então presidente e militar Hermes da Fonseca.
Durante tal período, as consequências dos séculos nos quais o sistema escravista se impôs no país continuavam bem vivas, com os mecanismos institucionais racistas em pleno funcionamento em diversos âmbitos, como no acesso à terra (e a tentativa de branqueamento da população através da imigração europeia), a exclusão das populações ex-escravizadas para espaços marginalizados, entre tantos outros exemplos.
A carta dos marinheiros é explícita sobre a situação:
“Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo. Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os Oficiais, os quais, tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratarnos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. faça os Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir a Nação Brasileira. Reformar o Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o soldo pelos últimos planos do ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não tem competência para vestir a orgulhosa farda, mandar por em vigor a tabela de serviço diário, que a acompanha. Tem V.Excia. o prazo de 12 horas, para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada.
Bordo do Encouraçado São Paulo, em 22 de novembro de 1910.
Nota: Não poderá ser interrompida a ida e volta do mensageiro.
Marinheiros.”1
Enfrentando a força da bandeira da revolta, “Viva a liberdade e abaixo a chibata”, o governo se viu forçado a aceitar parcialmente as reivindicações, inclusive o fim dos castigos físicos e a anistia aos envolvidos. Porém, em mais um exemplo de desonestidade da classe dominantes brasileira, os amotinados foram traídos, expulsos da Marinha e presos.
Depois do desfecho da revolta, João Cândido ainda sobreviveu a um massacre na Ilha das Cobras, no tristemente conhecido episódio no qual quase vinte marinheiros foram encerrados em uma cela da prisão e cobertos com cal. Apenas João e mais um sobreviveram.
Como relata o historiador Marco Morel:
“Ao desembarcar do encouraçado Minas Gerais, no Arsenal da Marinha, João Cândido foi cercado por dezenas de fuzileiros armados e imediatamente preso. Detido no Quartel Central do Exército, incomunicável, passou por interrogatórios duros e afrontosos, até então sem tortura física.
No dia 24 de dezembro, foi conduzido à Ilha das Cobras, no litoral fluminense. Sob pretexto de que todas as cadeias da cidade estavam lotadas, foi levado a uma cela solitária, encravada na rocha úmida, lúgubre e apertada. Apesar da denominação do local – solitária –, foram depois ali depositados mais 17 marujos. Na “solitária” ao lado ficaram outros 13 marinheiros. Ao todo, 31 detidos, nus, num espaço feito para duas pessoas. Eram os considerados “elementos perigosos”, no linguajar dos oficiais.
O comandante do Batalhão Naval, capitão de fragata Francisco José Marques da Rocha, levou as chaves das celas com ele ao se retirar da guarnição à noite. Na madrugada de 25, ouviram-se gritos de desespero dos encarcerados, debaixo de um “calor sufocante”. Durante o dia, o carcereiro jogou cal sobre os detentos, para “higienizar” o local. No dia 26, oficiais abriram a porta da cela e perguntaram se João Cândido vivia. O marujo gaúcho, com o rosto colado numa fresta da porta, ainda respirava, e cadáveres se amontoavam ao seu lado, inchados, envoltos em fezes e urina. Somente no dia 27, quando a notícia da violência começou a vazar, o capitão Marques da Rocha mandou retirar os detidos, que estavam desde o dia 24 sem qualquer alimento ou água.
Na cela de João Cândido, ele e o também gaúcho João Avelino Lira, 26 anos, apelidado de Pau da Lira, saíram inanimados, porém vivos. Nos sobreviventes das duas celas jogou-se ácido fênico, como forma de desinfecção. A pele de alguns se soltava do corpo. Ficaram ainda mais uma noite jogados no chão, nus e “ao dispor das moscas”, como lembrou João Cândido, acrescentando: ‘Era assim que se morria. Eu vi'”.2
A vida posterior do AImirante Negro
Após o processo, mais de uma centena dos ex-marinheiros foi enviada para o trabalho na extração de borracha na Amazônia. João Cândido foi encarcerado em um hospital psiquiátrico e, anos depois, inocentado de um processo que sofreu a partir da Revolta. Depois disso, teve uma vida dura trabalhando como estivador na Praça XV, no centro carioca. Morreu em 1969 quando morava em São João do Meriti, aos 89 anos.
Mas sua vida ainda teve outras idas e vindas. Nos anos 1930, foi membro do movimento integralista, tendo liderado a célula da Gamboa da organização. Retomou a aparição pública no conturbado ano de 1964, quando da mobilização dos marinheiros e fuzileiros navais em março daquele ano com propostas que continham muito do conteúdo político da Revolta da Chibata. Já bastante idoso, empolgou os membros da AMFNB (Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil) ao falar da sua experiência histórica.
São feitas campanhas financeiras em prol de Cândido, em situação de pobreza, e uma pensão é concedida a ele pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, em reconhecimento à sua luta pregressa.
A continuidade histórica com a mobilização social durante o governo de João Goular é evidente, tanto pelas novas (e ao mesmo tempo velhas) reivindicações dos marinheiros quanto pelas mesmas denúncias de quebra da hierarquia promovidas pelo almirantado. Com desfecho trágico, tal mobilização seria reprimida como decorrência do golpe cívico-militar de abril e a perseguição às lideranças dos praças da Marinha.
A história de João Cândido foi registrada pelo jornalista Edmar Morel, que em meados dos anos 1950 buscou o ex-marinheiro e escreveu o livro que posteriormente batizaria a Revolta da Chibata. Contra toda a historiografia militar que condenava a Revolta como uma ação criminosa, o trabalho foi importante para inscrever um novo olhar sobre o movimento em seu contexto de combatividade contra a ditadura representada pelos primeiros governos republicanos brasileiros
Porque sua memória é importante
Retomar a história da Revolta da Chibata e seu Almirante Negro é de extrema importância nos dias de hoje porque, frente ao negacionismo histórico que persiste em setores conservadores expressos pelo almirante Olsen, é necessário lutar pela memória das lutas populares do povo brasileiro.
Segundo palavras do próprio almirante:
“qualquer outro participante daquela deplorável página da história nacional seria como transmitir, em particular aos militares, a mensagem de que é lícito ‘recorrer às armas que lhes foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe.”3
Mesmo ignorando todo o contexto histórico e toda a estrutura racista e elitista – que, por sinal, ainda impera na Marinha – o almirante busca disputas a memória da Revolta pelo seu lado, o lado dos mesmo poderosos que impunham tais castigos físicos.
Nos dias de hoje, nos quais o racismo estrutura as relações sociais e econômicas do país e as forças armadas continuam como um estado paralelo no qual as diretrizes são tomadas sem compromisso democrático e os altos escalões continuam preservados por regras especiais de trabalho e previdência enquanto os praças continuam sofrendo com baixos salários, não é menor realizar essa disputa. Não por acaso, foi a mesma Marinha a principal força militar em defesa das tentativas golpistas de Bolsonaro, reafirmando seu caráter ainda mais aristocrático e conservador do que as outras forças armadas.
Muito além da polêmica sobre um lugar no Livro dos Heróis da Pátria, o Almirante Negro João Cândido já tem um lugar assegurado no rol dos lutadores da história do povo brasileiro.
Saiba Mais
Do marinheiro João Cândido ao Almirante Negro: conflitos memoriais na construção do herói de uma revolta centenária (Silvia Capanema P. de Almeida, Universidade de Paris 13)
Personagens do pós-abolição: João Cândido (LEMAD USP)
O Dragão do Mar: uma reflexão sobre memória, biografia e autobiografia de João Cândido Felisberto (Patrícia Coutinho Rangel da Silva, UERJ)
João Cândido em Investigação (IAR UNICAMP)
João Cândido 1910-1968: arqueologia de um depoimento sobre a Revolta dos Marinheiros (José Miguel Arias Neto, UEL)
João Cândido – Impressões Rebeldes (História UFF)
João Cândido, o mestre-sala dos mares (Álvaro Pereira Nascimento, UFRRJ)
João Cândido e Almirante Negro: disputas de memória e sensibilização para o local (Edison de Oliveira Rangel, UNIRIO)
Comemorar a resistência à opressão, no Centenário da Revolta da Chibata (ASSUFRGS)
João Cândido, o Almirante Negro (FIOCRUZ)
João Cândido, revolucionário em vida e post-mortem: a relevância do líder da Revolta da Chibata (Brasil de Fato)
João Cândido, o Almirante Negro, um Herói Nacional! (Fundação Palmares)
Quem foi João Cândido (Arquivo Público do Estado de SP)
João Cândido (Museu Afro Brasil)
João Cândido, um almirante contra a Chibata (Revista Aventuras na História)
Notas
- https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_da_Chibata#cite_note-54 ↩︎
- https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-almirante-joao-candido-revolta-chibata.phtml ↩︎
- https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/04/24/em-carta-comandante-da-marinha-critica-projeto-de-senador-petista-que-inclui-joao-candido-como-heroi-da-patria.ghtml ↩︎