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A Revolta dos Perdidos
Antifascismo

A Revolta dos Perdidos

A revolta marcou o contexto de lutas agrárias no interior no Pará

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Via Brasil Real é um País que Luta

Tempo de leitura: 5 minutos.

A Revolta dos Perdidos, ocorrida em 1976 na região de Piçarra, no sudeste do Pará, é um capítulo dramático das lutas no campo e pouco conhecido da história brasileira. Este conflito agrário envolveu camponeses, grileiros e as forças repressivas da ditadura militar, sendo marcado por violência, perseguições e graves violações de direitos humanos. Mais do que um episódio isolado, a revolta foi mais um episódio de manifestação das tensões latentes na questão fundiária brasileira aprofundadas durante o regime militar.

No cenário pós-Guerrilha do Araguaia (1972-1974), a região do sudeste do Pará continuava a ser foco de vigilância militar. A Guerrilha do Araguaia, um movimento de luta armada liderado pelo Partido Comunista do Brasil, havia sido sufocada pelas forças armadas com extrema violência, deixando uma memória de repressão e medo. Apesar disso, os problemas estruturais da região, a concentração de terras, a falta de políticas para os pequenos agricultores e o avanço da grilagem, permaneciam sem saída.

O sudeste do Pará era uma área estratégica tanto pelo seu potencial agrícola quanto pela sua localização geográfica, próxima ao rio Araguaia. Nos anos 1970, a ditadura militar incentivava a ocupação da Amazônia através do lema “Integrar para não entregar”, promovendo migrações e investimentos ao agronegócio na região. Essas políticas, voltadas aos grandes latifundiários, empresas e grileiros, eram  aplicadas em detrimento dos camponeses. Muitos trabalhadores rurais que haviam migrado para a região em busca de oportunidades enfrentaram a violência de jagunços e a omissão, e mesmo, em diversos episódios, conivência do poder público. 

Em outubro de 1976, as tensões na região de Piçarra atingiram seu ápice. A Revolta dos Perdidos, como ficou conhecida, surgiu da resistência de camponeses que se recusavam a abandonar as terras que ocupavam e cultivavam há anos. Eles se encontravam ameaçados tanto pela atuação de grileiros quanto pela repressão de órgãos estatais, como o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que priorizava os interesses de grandes proprietários. 

Cerca de 200 camponeses organizaram-se em Piçarra para um levante contra as ações repressivas. Essa revolta foi motivada pela necessidade de proteção de suas famílias e sua vida, como resposta e denúncia às injustiças que sofriam. No entanto, a organização do levante foi prejudicada por traições e deserções. No momento decisivo, apenas 36 camponeses estavam armados e dispostos a confrontar as forças policiais e os jagunços contratados pelos grileiros. 

O confronto ocorreu em outubro de 1976 e foi rapidamente reprimido. A polícia, informada sobre os planos dos camponeses, cercou a área e iniciou os disparos. Dois soldados morreram no embate: Claudiomiro Rodrigues e Ezio Araújo. Este incidente foi usado como justificativa para uma repressão ainda mais brutal, com a prisão e tortura de dezenas de trabalhadores rurais. 

Após o confronto, a região de Piçarra tornou-se palco de uma das mais violentas operações repressivas do período militar. Policiais e agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) intensificaram as ações na área, buscando identificar e capturar os líderes do movimento. Cerca de 40 homens foram presos, e relatos indicam que mulheres e crianças também foram vítimas de violência, incluindo estupros e espancamentos. Entre os casos mais emblemáticos está o de Edna Rodrigues de Souza, conhecida como Dina, que foi torturada e violentada durante sua detenção. 

As famílias dos camponeses foram despejadas de suas terras, a maior parte delas sem qualquer tipo de indenização ou reassentamento. Enquanto isso, os grileiros consolidaram seu controle sobre vastas áreas, respaldados por documentos falsificados e pela omissão de autoridades locais e federais. Essa situação agravou ainda mais a desigualdade social e a concentração fundiária na região. 

A Revolta dos Perdidos é emblemática da luta pela reforma agrária no Brasil. Apesar de sua derrota militar e política, o movimento inspirou outras organizações camponesas na luta por direito à terra e justiça. Nas décadas seguintes, organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) continuaram a intervir na região, denunciando os abusos cometidos durante a ditadura militar e buscando reparação para as famílias afetadas. 

Quatro décadas após os acontecimentos, os sobreviventes e descendentes dos camponeses da Revolta dos Perdidos continuam lutando por reconhecimento e reparação. Em 2018, uma audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados ouviu os depoimentos de familiares e sobreviventes, que relataram as atrocidades sofridas e pediram a inclusão do episódio na lista oficial de violações de direitos humanos do período militar. 

A Revolta dos Perdidos permanece como um símbolo da resistência camponesa contra a opressão e a desigualdade no campo. Ao mesmo tempo, é um lembrete das feridas ainda abertas na história brasileira e da necessidade de políticas que garantam justiça, reforma agrária e dignidade para os trabalhadores do campo. 

Saiba Mais

https://racismoambiental.net.br/2018/08/23/familias-de-camponeses-da-revolta-dos-perdidos-dao-depoimento-na-comissao-de-direitos-humanos-e-minorias

MECHI, Patrícia Spósito. Da Guerrilha à Luta dos Posseiros: a permanência da violência na repressão aos trabalhadores rurais na região do Araguaia. Anais I Simpósio Trabalhadores e a produção social, 2011. 

MECHI, Patricia Sposito. Camponeses do Araguaia: da guerrilha contra a ditadura civil-militar à luta contemporânea pela terra. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 46, 2013.

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