
As verdades incômodas da Transição Energética
Uma resenha do novo livro de Manuel Casal Lodeiro
Embora os cisnes negros sempre tenham existido, foi apenas no século XVIII que os europeus os descobriram na Austrália. Talvez a descoberta desses cisnes pudesse ter sido prevista com base nos dados disponíveis na época, mas, mesmo assim, confirmar sua existência foi um acontecimento inesperado. Assim como os europeus do século XVIII, hoje nos deparamos com o nosso próprio cisne negro: a impossibilidade de uma Transição Energética tal como tem sido proposta até agora. Este será o fato que se via chegar há anos e que, apesar de ser totalmente previsível, não foi tratado com a devida importância.
Manuel Casal Lodeiro nasceu em 1970 em San Vicente de Barakaldo (Biscaia, Euskal Herria). É conhecido por seu trabalho no campo político, cultural e social como divulgador de propostas ecologistas diante da iminência do Pico do Petróleo (Peak Oil) e de outros desastres provocados pelo uso crescente e desmedido de energias não renováveis. Promoveu diversos projetos e participou de outros, sendo cofundador da associação Véspera de Nada para uma Galiza sem Petróleo, assim como fundador e coordenador da revista 15/15\15. Criticando os rumos da esquerda hegemônica de perfil produtivista e buscando informar sobre a necessidade de um modelo de vida compatível com a sobrevivência e o bem viver da espécie humana, escreveu artigos como “Si vis pacem, para descensum” ou “Nós, os detritívoros”, bem como livros como A esquerda diante do colapso da civilização industrial. Notas para um debate urgente (editora La Oveja Roja, 2016) e o que temos em mãos.
O objetivo geral do livro é expor as verdades incômodas da Transição Energética, analisando de forma crítica certas políticas “verdes” das democracias liberais, demonstrando que a maioria das medidas propostas são irreais, tecno-otimistas, contraditórias com as evidências empíricas ou incompatíveis com outros objetivos necessários à própria transição. Como contraponto a essa Transição Energética distorcida, o autor propõe uma Transição Energética justa, não acumulativa com as fontes anteriores, decrescentista energética e economicamente, baseada em fontes realmente renováveis e, acima de tudo, mais comprometida com o bem-estar humano.
O livro de Lodeiro se destaca por seu caráter interdisciplinar, com fundamentação científica e filosófica. A obra também conta com a exposição e explicação de diversos dados, gráficos e tabelas que sustentam de forma contundente as posições defendidas pelo autor. A isso soma-se o marcado caráter de divulgação da obra. Sem erudições ou tecnicismos desnecessários, trata-se de um texto extremamente preciso, porém acessível a todos, algo totalmente necessário dada a magnitude, urgência e universalidade de sua proposta. Além disso, o leitor pode consultar ao final da obra um glossário com os termos mais específicos.
A Transição Energética propõe uma redução do consumo de combustíveis fósseis, devido ao seu grande impacto ambiental (especialmente no que diz respeito ao aquecimento global, a proposta seria eliminá-los quase por completo). Com essa ideia em mente, foram propostas formas alternativas de obtenção de energia, como as energias renováveis (eólica e fotovoltaica, por exemplo). No entanto, surge um problema: até hoje, “ao longo da história, quando se realizou uma Transição Energética, não se abandonou a fonte anterior, mas seu uso continuou, inclusive de forma crescente” (p. 33). Por ora, as energias renováveis foram adicionadas às fósseis, desempenhando um papel auxiliar. Desse modo, a Transição Energética como tem sido formulada até agora não parece cumprir o objetivo proposto: colocar um limite à crise climática.
O negacionismo que representa continuar sustentando esse tipo de Transição Energética decorre da necessidade de manter nosso modelo socioeconômico atual para satisfazer os interesses dos governantes, das empresas capitalistas, de boa parte da população do Norte Global, etc. O PIB é usado como indicador de progresso humano, quando, na verdade, não é adequado para isso. O crescimento do PIB e as emissões de carbono estão profundamente vinculados, de modo que não é possível crescer economicamente sem consumir mais carbono. Por isso, se continuarmos regidos pelo mesmo modelo capitalista (produtivista, consumista, extrativista e fosilista), manter-se em um nível seguro de aumento da temperatura global seria apenas uma ilusão. Por essa razão, o autor afirma que o modelo decrescentista é o único modelo sustentável no futuro. Mas não se deve esquecer que “o decrescimento não implica perda de bem-estar […], busca justamente o bem-estar ou a prosperidade sem crescimento” (p. 52), de modo que nossos esforços devem se dirigir a viver melhor com menos.
Entre as propostas centrais da suposta Transição Energética, devemos mencionar a “descarbonização da economia”, que, rigorosamente, consistiria em “eliminar do funcionamento dessa economia qualquer uso de moléculas que contenham esse elemento químico” (p. 61): mas isso é impossível. O realista seria antes uma desfosilização da economia, ou seja, eliminar o uso de combustíveis fósseis (e, com isso, o aumento das emissões de CO2, principal gás de efeito estufa). No entanto, toda nossa economia depende desse tipo de combustíveis, inclusive hoje a digitalização (não apenas pela manutenção dos servidores, mas também pela extração de minerais para sua fabricação). Sem decrescer nossa economia, a desfosilização é impossível. E o decrescimento deveria afetar todas as indústrias, inclusive a alimentícia. “O empobrecimento que implica a descarbonização significa desacelerar, fazer menos, usar menos energia […]; não significa necessariamente viver pior. Mas sim viver de outro modo” (Jorge Riechmann citado por Lodeiro, p.73).
A proposta da economia circular seria impossível por dois motivos. Em primeiro lugar, porque a sociedade atual é regida por princípios capitalistas, tendentes a uma expansão incessante da produção e consequente geração de resíduos. Em segundo lugar, devido à segunda lei da termodinâmica: “é simplesmente impossível reciclar todo o volume de uma determinada matéria” devido a “processos de dispersão, irreversibilidades, etc.” (Antonio Valero, citado por Lodeiro, p.81). Diante disso, o autor propõe um modelo diferente: ao invés de circular, tender para uma economia em espiral de viés decrescentista para “reverter a espiral do capitalismo” (p. 87). O objetivo é uma forma mais benigna de se relacionar com Gaia (e também mais realista que o modelo circular).
Outras propostas relacionam-se com as energias renováveis. Contudo, no modelo que Antonio Turiel chamou de REI (Renovável Elétrico Industrial), estas padecem de tecno-otimismo, pois não basta um remendo tecnológico para resolver um problema sistêmico. Tecnologias como aerogeradores ou células fotovoltaicas não geram “um só watt […] sem utilizar quantidades significativas de matérias-primas e de energias fósseis” (p. 99), entre elas o petróleo, cujo fornecimento provavelmente “cairá 50% até 2050 em relação ao consumo mundial de 2019” (p. 40). O maior problema é que não existem outras fontes de energia com rendimento semelhante ao do petróleo ou carvão de melhor qualidade (em termos de energia líquida ou TRE – Taxa de Retorno Energético). Assim, resta-nos optar pelo que Luis González Reyes chama de tecnologias R3E: “renováveis, realmente renováveis e emancipadoras”, tecnologias apropriáveis por todos: tecnologias pré-industriais ou dos primeiros tempos da industrialização.
O greenwashing de grandes empresas e políticos nos vende certas energias como verdes e milagrosas quando na verdade não o são. No caso da energia atômica, ignora-se os recursos necessários para construir as usinas, que demandam uma quantidade de tempo e energia insustentável (sem mencionar o espinhoso problema dos resíduos nucleares). O gás natural, embora às vezes considerado “verde”, é metano, que quando escapa para a atmosfera tem efeito estufa muito superior ao do dióxido de carbono. O hidrogênio verde não pode ser considerado fonte de energia, pois tem um TRE < 1, além de usos muito limitados. A taxonomia verde europeia classifica essas fontes como verdes por pressões políticas e econômicas que vão contra as evidências científicas e a opinião popular, demonstrando que se trata de uma política antidemocrática.
Frente a essas propostas, o único caminho verdadeiramente promissor é uma transformação decrescentista do modelo de produção e consumo. Entre suas consequências está o abandono do veículo privado como produto de massas, incluindo o carro elétrico, o estandarte da Transição Energética convencional. Isso se deve ao fato de que “ao sair da fábrica, após seu processo de construção, ele já consumiu em média o equivalente a 20 barris de petróleo” (p. 132), entre outros materiais escassos. Além disso, se quiséssemos substituir toda a frota atual, as baterias exigiriam mais lítio do que existe no mundo. Por outro lado, o decrescimento afetará o setor público, exigindo uma repartição equitativa de cargas e gastos. Precisaremos, então, de uma Transição Energética justa que “reconheça que todos seremos afetados por ela, que todos somos vulneráveis, e que pratique também essa justiça com os demais seres humanos, com o restante da biosfera e com as gerações futuras” (p. 130).
Naturalmente, o emprego será profundamente transformado: retornaremos a certas profissões pré-industriais e surgirão novas ocupações em áreas como a agroecologia e a preservação da natureza. Junto com o emprego vem o consumo e o problema de sua redução. Para Lodeiro, a estratégia deve ser dupla: tanto a ação governamental quanto a individual devem ocorrer em paralelo e se retroalimentar. Consumir menos de forma destrutiva, mais de forma cooperativa. Só assim poderá ocorrer uma verdadeira Transição Energética e ecosocial democrática.
O autor conclui que o desenvolvimento sustentável, em rigor, é impossível, e que a Transição Energética não pode ser alcançada apenas com um aumento da eficiência técnica. Por isso, deveríamos abandonar o foco em termos como sustentabilidade e eficiência em favor da resiliência. Não se trata de ser sustentável, mas de ser resiliente. Nas palavras de Lodeiro, resiliência é a “capacidade de um ser vivo, de um coletivo, organização ou sistema de resistir a um impacto ou trauma importante sem perder suas funções principais” (p. 231).
E, mais ainda, ao longo do livro descobrimos que o próprio termo “Transição” é problemático. Uma transição nos termos em que foi proposta não é apenas impossível, mas também insuficiente para enfrentar a crise climática. A única opção realmente viável é um decrescimento que passe pela redução do consumo e da produção em escala global. Só assim podemos garantir o bem viver – nosso, da biosfera e das gerações futuras.