Via UOL
Sob uma perspectiva histórica, ao lado dos torcedores ingleses, mais conhecidos pela designação hooligans, os Ultras italianos são uma das principais matrizes difusoras de estilos internacionais de torcer na segunda metade do século XX. Qual a diferença básica entre os dois?
Segundo o antropólogo francês Christian Bromberger, o primeiro tipo de organização torcedora se irradiou a partir da Inglaterra, em fins da década de 1960, e estendeu seu arco de influência sobre a Europa setentrional, em especial sobre a Alemanha, além de ter atingido o norte da França, a Bélgica e a Holanda. Da década de 1990 em diante, com a queda do bloco comunista, liderado pela União Soviética, seu raio de difusão atingiu os países do Leste Europeu, que assimilaram à sua maneira o hooliganismo e relacionaram tal estilo às tradições locais.
A formação social das torcidas inglesas é historicamente mais homogênea, sua coesão interna é bem acentuada e associa-se com maior intensidade aos contingentes juvenis do proletariado, formado entre as gerações do pós-Segunda Guerra Mundial. Seus membros são de difícil localização no cotidiano, em uma opção deliberada, e assumida com o decorrer do tempo, pela informalidade associativa. Ou seja, trata-se de aparecer apenas nos pubs e nas tribunas em dias de jogos, a fim de impedir sua identificação pela polícia e de se despistar da vigilância para conseguir encontrar os rivais e ir às vias de fato.
Assim, as firmas, como eram conhecidos os agrupamentos torcedores até os anos 1970, com os nomes de Inter City Firm (West Ham), Headhunters (Chelsea), Red Army (Liverpool) e Red Devils (Manchester United), dão lugar progressivamente na Inglaterra aos casuals. Isso se acentua na esteira da década de 1980, quando tragédias em estádios vão macular ainda mais a imagem antissocial e antidesportivas desses grupos, de hegemonia masculina e juvenil.
Já o segundo tipo foi difundido na Itália durante a década de 1970 e sua propagação se deu em maior grau na Europa meridional e depois no Mediterrâneo, com destaque para a Espanha, para o sul da França, para o Marrocos, para a Grécia, para a Turquia e para o Egito. Com um tecido social menos uniforme que os ingleses e com uma composição de classes mais híbrida, as torcidas latinas procuraram se congregar através da institucionalização. Isto é, são associações que existem de maneira formal ou, como dizemos em bom português, com seu próprio CNPJ.
Assim, os ultras promovem a distribuição espacial em subgrupos, a fixação territorial em sedes, a venda de seus materiais (roupas, adesivos), a veiculação de revistas próprias – os fanzines, comercializados em certo período em bancas de jornal. Entre os ultras, há a ritualização de certas práticas nos estádios e a elaboração prévia de performances e palavras de ordem. Ainda que padeçam de má reputação social, como as torcidas inglesas, tal presença institucionalizada permitiu-lhes uma maior integração na sociedade e uma maior visibilidade das suas formas de torcer.
Enquanto os ingleses participam dos jogos através basicamente de cânticos, com a localização no setor atrás dos gols e com uma identificação discreta por meio de cachecóis com as cores dos clubes, a existência pública dos ultras italianos possibilitou atuar de forma ativa nas “curvas” das arquibancadas, constituindo uma cultura material e simbólica legítima ao seu redor. A participação se dá por meio de faixas com o nome das torcidas e com mensagens via de regra provocativas, com instrumentos musicais diversos, com bandeiras e bandeirões, com o ensaio de coreografias e com a exibição de mosaicos, que se mesclam a sinalizadores de fumaça e a toda sorte de pirotecnia.
Por suposto, ao lado da demarcação do território e dos símbolos, a violência também é constitutiva da identidade dos ultras italianos. De início, porém, salienta-se uma diferença em relação aos hooligans ingleses, pois atos violentos nas primeiras décadas de formação da cultura ultra eram vistos como “instrumentais”. Isto é, para os italianos a violência – brigas com rivais, com policiais e diferentes atos de vandalismo dentro e fora dos estádios – era um “meio”, uma contingência do enfrentamento, uma reação e um mecanismo de defesa, ao passo que para segmentos expressivos dos hooligans tal violência já se constituíra em um “fim” em si mesmo, ou seja, tornara-se a motivação principal para acompanhar o futebol, para “defender” o seu clube e, em especial, a honra do seu grupo.
É claro, essa é uma forma inicial e esquemática de introduzir o assunto. Ao longo do século XXI, a difusão dos meios de comunicação, o aumento da circulação das imagens e a intensificação do fluxo dos deslocamentos torcedores pelo mundo modificam e embaralham esse cenário. Aquilo que se chama de globalização se tornará uma realidade para o futebol e para as torcidas também. Tais matrizes torcedoras, por conseguinte, vão se interpenetrar e se fundir. A divisão geográfica entre os hooligans ingleses e os ultras italianos vai assim ser diluída, dando origem ao que um antropólogo argentino chamou, para o contexto da cultura popular, de “culturas híbridas”.