O neofascismo com “cara de esquerda”

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Via Revista Badaró

Apoio à Reforma Agrária, oposição à privatização de empresas estatais, críticas ao domínio econômico dos Estados Unidos e da União Europeia sobre o resto do mundo. À primeira vista, a união destas pautas parece sugerir um posicionamento de esquerda, ou minimamente progressista. Nem sempre é assim.

Dois fenômenos surgidos na Rússia pós-soviética trazem uma abordagem confusa e perigosa a respeito de bandeiras históricas da esquerda. O primeiro deles é o nacional-bolchevismo, representado principalmente pelo ex-escritor beat Eduard Limonov. O russo criou seu partido em 1993, depois de voltar do exílio na França e de lutar ao lado de tropas sérvias na Bósnia. A seu lado, estavam o astro do xadrez Garry Kasparov e o filósofo Aleksandr Dugin.

Os nacional-bolcheviques – conhecidos como nazbols – buscam unir conceitos do socialismo soviético ao fascismo. Sua bandeira é inspirada no estandarte do Terceiro Reich: vermelha com um círculo branco ao meio, no qual, no lugar da suástica, aparecem a foice e o martelo.

Em 2001, Dugin rompeu com os nazbols, fundou o Partido da Eurásia e começou a desenvolver o que chamou de “Quarta Teoria Política”, ideologia que seria sintetizada em um livro homônimo, em 2009. Devido a seu caráter menos centrado na Rússia e mais espalhado mundo afora, é a ela que nos ateremos.

O que é a Quarta Teoria Política?

Dugin conceitua a “Quarta Teoria Política” (QTP, também chamada de ‘duginismo’) como superação ao que chama de “três teorias da modernidade”: liberalismo (primeira), socialismo (segunda) e fascismo (terceira). Das três, a única declarada por ele como inimiga é a primeira, que considera vencedora.

Baseado em autores como Martin HeideggerRené Guénon e Julius Evola, Dugin formulou sua salada ideológica que mistura fascismo, algumas ideias econômicas análogas à esquerda e uma pitada de misticismo. Antiiluminista, ele conclama o retorno à “tradição” e ao “povo”, como contraponto ao mote das três teorias anteriores: o indivíduo (liberalismo), a classe (socialismo) e a nação (fascismo). Dugin considera o fim da Segunda Guerra Mundial como derrota do fascismo e o colapso da União Soviética como vitória do liberalismo, a partir de onde acabaria a modernidade. Embora rejeite a pós-modernidade, a QTP acredita na existência dela, portanto é uma ideologia pós-moderna.

Enquanto os nazbols se opunham a Vladimir Putin, Dugin se tornou uma espécie de “guru” do governo russo, do qual é conselheiro. Para o ideólogo da QTP, a Rússia não faz parte do mundo ocidental ou oriental, mas de um contexto próprio que chama de “eurasiano” – o qual estaria em conflito com os “atlantistas” dos Estados Unidos e União Europeia, supostamente interessados em dominar o restante do mundo.

Ao se opor ao domínio estadunidense e europeu, Dugin não costuma chamar tal fenômeno de “imperialismo”, como tradições teóricas de esquerda o fazem, e sim de “globalismo”. Os termos estão longe de ser sinônimos: enquanto a ideia de imperialismo pressupõe um domínio de potências sobre outros países em lógica análoga à de um império, o conceito de “globalismo” parte da paranoia reacionária de que haveria um complô de governo global.

Tal concepção é compartilhada com Olavo de Carvalho, com quem Dugin já debateu. A discordância pode ser resumida no fato de que, para Carvalho, tal conspiração seria liderada por banqueiros, muçulmanos e comunistas; já para Dugin, por banqueiros e “atlantistas”.

Outro expoente da chamada “direita alternativa” (alt-right) adepto da teoria do “globalismo” é Steve Bannon, fundador da agência Cambridge Analytica – centro das polêmicas envolvendo disparos de fake news para beneficiar campanhas de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Bannon também cultiva boas relações com Vladimir Putin, Matteo Salvini (ex-premiê de facto da Itália) e Viktor Orbán (premiê húngaro), todos apoiados por Aleksandr Dugin.

Antiliberalismo nem sempre é aliado

O duginismo parte da mesma visão esotérica de mundo que baseia o olavismo: rejeição ao legado racionalista deixado pela Revolução Francesa, seguido do clamor por um retorno às “tradições” e ao espiritualismo. As diferenças se dão em relação a quais tradições e formas de espiritualidade serviriam como guias. 

Portanto, o antiliberalismo da QTP vai na contramão do antiliberalismo socialista, ou de qualquer concepção de esquerda, seja moderada ou radical. O próprio Dugin, ao explicar o que considera erros do fascismo, afirma que este comete o equívoco de “se basear no iluminismo”, embora explicite que o considera “muito melhor do que as outras teorias modernas”. As divergências estão em mínimos detalhes teóricos, não sendo exagero considerar o duginismo uma nova vertente do fascismo, ou releitura dele.

A esquerda, em todo seu amplo espectro, não é antiiluminista, mas um conjunto de diversas ideologias que possuem, em maior ou menor grau, raiz iluminista. Mesmo os autores de esquerda mais críticos ao próprio iluminismo não o rejeitam, e sim apontam o que consideram falhas nele, como é o caso de Theodor Adorno e Max Horkheimer em “A Dialética do Esclarecimento”.

O apoio dos duginistas a governos e povos que se opõem direta ou indiretamente ao imperialismo estadunidense – como Palestina, Venezuela, Irã e Síria – não parte do conceito de autodeterminação dos povos frente a interesses econômicos, mas da defesa identitária da “tradição” contra o tal “globalismo”, que supostamente objetivaria destruí-la. Ainda que, à primeira vista, tais posturas pareçam convergir, o ponto de partida da QTP é essencialmente reacionário.

No discurso de fundação do Centro de Estudos Conservadores, dirigido por Dugin na Universidade Estadual de Moscou, o próprio afirmou que “é no conservadorismo que se deve buscar uma ideologia necessária para a Rússia atual” e que seu pensamento é “indubitavelmente conservador”.

A QTP no Brasil

No Brasil, o duginismo já possui seus representantes. A principal entidade adepta à QTP no País é a seção nacional da Nova Resistência (NR). O grupo se apresenta como uma união “com células do mundo todo”, formada por eurasianistas, nacional-bolcheviques, duginistas, “nacional-revolucionários”, “distributistas”, “anticapitalistas de direita” entre outros, contra a “agenda globalista”. 

Em seu site e suas páginas nas redes sociais, a NR já fez postagens em que apoia agressões a imigrantes venezuelanos; lamenta um suposto plano de “fim da masculinidade”, segundo eles, posto em prática atualmente; condena o feminismo; critica a inexistente “ideologia de gênero” e nega a existência do holocausto. A homofobia, segundo a NR, seria um conceito “inventado em academias e em ONGs” em prol de um suposto “lobby LGBT”, do qual também faria parte a legalização do aborto.

Formada por típicos adeptos de teorias de conspiração, a NR acusa George Soros de patrocinar o tal “lobby”, além de acreditarem em “cura gay” e que a AIDS seria uma “doença homossexual”. Seu líder, Raphael Machado, já usou seu perfil pessoal para atacar o que considera “choramingo gay da judiaria”, utilizando não só do termo “gay” como xingamento, mas também de uma palavra historicamente carregada de preconceito contra judeus (“judiaria”).

A NR espalha cartazes em apoio a Enéas Carneiro, notório político de extrema-direita fundador do Partido da Reedificação da Ordem Nacional (Prona), no qual havia inclusive adeptos do integralismo. No site da organização duginista, há um artigo favorável a Gustavo Barroso, segundo principal líder da Ação Integralista Brasileira (AIB). Barroso foi tradutor do “Protocolo dos Sábios de Sião” (panfleto antissemita que ajudou a basear o nazismo) e autor de “História Secreta do Brasil”, livro em que defende a tese paranoica de que os judeus manipulam o poder político-econômico nacional.

André Luiz dos Reis Constantor, membro da NR, diz em vídeo que o fascismo é, das “três teorias da modernidade”, a mais próxima à QTP. Na mesma postagem, ele critica integralistas que apoiaram Jair Bolsonaro, devido à agenda econômica neoliberal do bolsonarismo, além das relações com a Maçonaria e com Israel. “É esse pessoal que cita Gustavo Barroso”, diz ao apontar a incoerência dos citados, demonstrando simpatia pelas ideias do teórico integralista.

O integralismo é tão referenciado – e reverenciado – que até seu lema foi objeto de releitura por parte da Nova Resistência. O chavão “Deus, Pátria e Família” dos partidários de Plínio Salgado, Miguel Reale e do próprio Barroso tornou-se “Pátria, Socialismo e Família” no caldeirão ideológico do grupo.

A esquerda que não se atentou

Mesmo com todas as credenciais de movimento neofascista, a Quarta Teoria Política não é percebida como tal por setores da esquerda brasileira. Um caso recente foi o do historiador Jones Manoel da Silva, que em seu perfil do Facebook, afirmou que quem “considera nazbols e QTP como a maior ameaça atual” está descolado da realidade, embora não tenha apontado quem o faça. Ele concluiu o post pedindo preocupação com a extrema-direita.

De fato, a QTP e os nazbols não são a “maior ameaça” atual e não temos conhecimento de alguém que o afirme. Isso não exclui o fato de serem perigosos. Organizações que pregam ódio contra imigrantes, judeus, feministas e outros grupos não devem ser ignoradas quanto ao perigo que representam. Exemplo prático: os Carecas do Brasil não são uma ameaça estrutural. Ainda assim, têm poder para causar muitos estragos, como ataques físicos, atentados e mortes – e os causam.

No entanto, o mais sintomático de como parte da esquerda está fora de órbita no que diz respeito à QTP é que Jones pede para se preocuparem “com a extrema-direita”. Se os duginistas pensam, agem e se organizam como extrema-direita, o que seriam se não parte dela? E se tal movimento neofascista se infiltra no seio da própria esquerda, por que a esquerda deveria tratá-los como irrelevantes e desmerecer tal infiltração?

Outro episódio preocupante foi a presença de membros da Nova Resistência no Congresso Trabalhista de 2019, a convite da Frente Nacional Trabalhista, do vereador Leonel Brizola Neto (PSOL-RJ) e de Vivaldo Barbosa, ex-líder do PDT na Câmara dos Deputados. Na ocasião, o líder da organização, Raphael Machado – o mesmo que nega a existência do holocausto e que usa “gay” e “judiaria” como xingamento – fez um discurso.

relação entre militantes da Nova Resistência e setores do PDT não é nova. Aproveitando-se das contradições ideológicas do varguismo, que tem influência no programa do partido, alguns duginistas se aproximaram ou filiaram à legenda. Entre a mídia progressista, o Jornal GGN publicou texto de Alessandre Argolo que endossa posições de Dugin e o blog Diário do Centro do Mundo, por sua vez, chegou a republicar um texto da Nova Resistência, no qual Dugin pede uma “frente populista unificada” contra Bolsonaro.

O site da NR afirmou que alguns de seus membros estiveram presentes no evento de lançamento do livro “Carta no Coturno”, dos jornalistas André Ortega e Pedro Marin – ambos da Revista Opera. O livro é uma coletânea de artigos sobre o avanço do militarismo desde o golpe contra a presidente Dilma Rousseff. Tanto Ortega quanto Marin negaram vínculos com o grupo.

Não é nosso objetivo atacar os militantes, jornalistas e veículos aqui citados, dos quais reconhecemos a contribuição para divulgação de conteúdo contra-hegemônico e de esquerda, mas chamar a atenção para o problema. A Nova Resistência e outros movimentos de mesma matriz teórica já provaram por diversas vezes ser grupos reacionários, seguidores de uma ideologia abertamente simpática ao fascismo e análoga a este.

Enquanto os que se reivindicam de esquerda – independentemente de corrente teórica – não perceberem e não deixarem claro que grupos duginistas não são aliados, eles se fortalecerão e serão, a despeito de sua suposta “irrelevância”, cada vez mais expressivos. E o pior: este inimigo, ao contrário do bolsonarismo, tem “cara de esquerda”.