Via El País
A tentativa de assassinato de Cristina Fernández de Kirchner tinha todos os ingredientes para ser um caso fácil no tribunal. O brasileiro Fernando André Sabag Montiel disparou uma arma no rosto da vice presidente no meio de uma multidão. O ataque falhado – porque a bala não saiu – foi gravado por câmeras de televisão e telefones celulares e os vídeos circularam pelo mundo. O agressor atirou a arma ao chão, foi atacado por um manifestante e depois preso pela polícia. A única questão que restava era por que Sabag Montiel havia tentado acabar com a vida do político mais poderoso da Argentina nas últimas duas décadas e se ele havia agido sozinho. Mas depois de três dias, não só não há resposta a essa pergunta, como as dúvidas estão crescendo. A unidade com a qual a sociedade argentina repudiou o ataque também está começando a rachar.
O promotor Carlos Rívolo, encarregado da investigação, estava confiante de que o telefone do detento forneceria pistas sobre o motivo da tentativa de assassinato, revelando seus últimos movimentos e conversas. Mas não será esse o caso: todas as informações no telefone foram apagadas, de acordo com os vazamentos na mídia local.
No momento de sua prisão na noite de quinta-feira, a Polícia Federal argentina apreendeu o telefone de Sabag Montiel e tentou destravá-lo. Após várias tentativas fracassadas, foi enviada a especialistas da Polícia de Segurança Aeroportuária, que afirmam que quando a abriram detectaram que havia sido “reinicializada na fábrica”. Embora eles não excluam que as informações possam ser recuperadas, se for possível, elas levarão mais tempo do que o esperado.
O segundo revés para a investigação tem a ver com a pistola Bersa semi-automática com a qual foi realizada a tentativa de assassinato. Está claro nos vídeos que o portador da arma tem uma tatuagem na mão, e um especialista confirmou que é a mesma tatuagem nazista que Sabag Montiel tem na mão esquerda. A arma tinha vestígios de pólvora, um sinal de que havia sido disparada recentemente, mas não foram encontrados vestígios do agressor, de acordo com o jornal Clarín. A hipótese de que eles poderiam ter sido eliminados quando foi pisoteado e tratado não convence a todos.
Ensaio sobre a corrupção
Os reveses na investigação deram origem a teorias conspiratórias difundidas por aqueles que acreditam que o ataque foi encenado para desviar a atenção da mídia do alegado julgamento por corrupção contra o ex-presidente argentino e da difícil situação econômica que o país está passando, com uma inflação anual superior a 70%. Aqueles que defendem esta teoria lembram que amanhã o julgamento no caso conhecido como Vialidad retoma e é muito conveniente que Kirchner se apresente como uma vítima e encubra todas as notícias.
A mobilização Kirchnerista que permitiu a Sabag Montiel passar despercebido pelos guardas às portas da casa do vice-presidente está ligada a este julgamento. Começou em 22 de agosto, quando o promotor pediu a desqualificação de Kirchner por toda a vida e 12 anos de prisão. A promotora alega que durante seus oito anos como presidente da Argentina (2007-2015) dirigiu uma associação ilícita que desviou fundos públicos de obras públicas na província de Santa Cruz. Em rejeição à acusação e aos insultos recebidos pelo vice-presidente, centenas de militantes Kirchneristas vieram naquela mesma noite ao luxuoso bairro da Recoleta, onde vive a vice-presidente, e o comício tem acontecido desde então. A esquina entre as ruas Juncal e Uruguai tornou-se o canto mais famoso da Argentina, ainda mais que Segurola e Habana, o mítico endereço da estrela do futebol Diego Armando Maradona.
Entre os cantos ouvidos lá nas últimas duas semanas está um que adverte que “se tocarem em Cristina, que confusão farão”. Para os apoiadores de Kirchner, incluindo membros do governo, a tentativa de assassinato está ligada aos discursos de ódio feitos contra ela pela oposição e pela mídia. Alguns líderes da oposição optaram por baixar o nível de confrontação e não responder, mas outros acusaram o governo de usá-lo politicamente e de reagir exageradamente em sua defesa da democracia. Os legisladores da Proposta Republicana saíram da sessão extraordinária da Câmara dos Deputados no sábado em protesto contra as ações do governo.
O líder da extrema-direita Javier Milei criticou o fato de que o presidente, Alberto Fernández, decretou um feriado bancário na sexta-feira e que a mesma decisão não havia sido tomada diante de outros incidentes que chocaram a sociedade argentina, como a morte do promotor Alberto Nisman ou o ataque à embaixada israelense. Sete anos se passaram desde o primeiro e trinta desde o segundo, mas os dois casos ainda não foram resolvidos. A falta de confiança no sistema de justiça levou parte da população a duvidar se a verdade será conhecida neste caso.