Via Revista Obdulio
Assim que entrei, subi e me sentei na prancha mais alta da galeria sul do estádio Hernando Siles em La Paz, Bolívia. E não estou exagerando quando digo que era a mais alta, pois o estádio que leva o nome do 31º presidente do país está localizado a 3.577 metros acima do nível do mar. Ao contrário do Chile, os ingressos para o jogo são comprados diretamente no estádio e não on-line. O preço é justo, pois em outros países da América Latina, um ingresso equivalente custa o dobro ou mais. Esse estádio, talvez um dos mais complicados para times de futebol e seleções nacionais nessa parte do continente, era imperdível.
Com o passar do tempo, as pessoas começaram a encher o estádio. A multidão estava vestida de amarelo e preto, as cores do time da casa, o Club The Strongest. Eu estava inquieto, queria saber tudo o que estava acontecendo nas entranhas do estádio; fui aos túneis, onde você se protege do frio tomando chá de coca (mate de coca para os bolivianos) e comendo uma empanada de queijo. A pirotecnia nas ruas ao redor transmitia a mensagem clara de que o jogo contra o Club Atlético Nacional de Potosí estava prestes a começar. Procurei o melhor lugar, agora na bandeja inferior da galeria, e observei atentamente a chegada da Gloriosa Ultra Sur 34, a torcida mais forte. Eles desfraldaram bandeiras e faixas ao som de metais e murga. No espaço entre uma bandeja e outra, a bandeira oficial da barra; mais ao lado, uma bandeira de Ernesto “Che” Guevara (como cantada por La Renga em seu “Blues de Bolivia”) e as cores da bandeira boliviana chamaram minha atenção. A derrota por 2 a 3 para o “Tigre”, como o clube é conhecido, foi minha primeira apresentação aos aurinegros.
Os primeiros times de futebol na Bolívia: da Inglaterra para La Paz
O futebol chegou à Bolívia, assim como o cinema, a bordo da ferrovia que ligava o porto de Antofagasta à cidade de Oruro no final do século XIX. Conta a história (Pelaez & Castro, 1962) que um empresário de Oruro que vivia em outras terras, de volta à Bolívia, retornou trazendo em sua bagagem uma bola e uma ideia: impor o futebol nas alturas dos Andes. Ele havia visto o jogo inglês no Chile e achou que poderia ser adaptado para as terras altas. Assim, em 26 de maio de 1896, ele fundou o primeiro clube boliviano: o Oruro Royal. Com a virada do século e também como resultado de transformações econômicas e políticas, a cidade de La Paz tornou-se o verdadeiro berço do desenvolvimento do futebol boliviano. Em 1901, foi formado o Bolivian Rangers e, em 1904, o Thunders. Anos mais tarde, em 1908 e na mesma cidade, foi criado o The Strongest para a glória de La Paz e do futebol boliviano (Gisbert, 1994).
The Strongest Football Club
Foi na noite de 8 de abril de 1908, na altitude de La Paz, que um grupo de doze jovens de La Paz se organizou com a fantástica ideia de fundar um clube de futebol que duraria para sempre, um clube completamente forte. Naquela noite, entre os fundadores, nasceu o nome Strong, uma palavra inglesa que significa “forte”, e foi formado o Strong Foot ball Club. Dias depois, concordou-se em acrescentar o artigo “The” e o superlativo “est”, estabelecendo assim o nome oficial do The Strongest Foot ball Club, que viria a ser algo como “El fortísimo” ou “El más fuerte”. Victor Manuel Franco, um membro fundador, sugeriu as primeiras cores do clube e mostrou uma camisa com linhas verticais amarelas e verde-escuro. A isso, foi sugerido que o verde fosse trocado por preto, ao que todos disseram: “Como a chayñita! Assim, a camisa foi desenhada com listras verticais douradas e pretas, e o brasão no estilo inglês com 7 listras verticais com o nome “The Strongest” no topo. O nome “Tigre” viria muito mais tarde, em 1941, quando o então presidente da Asociación de Fútbol de La Paz (AFLP, na época conhecida como Associação de Futebol de La Paz), Max de la Vega, batizou os jogadores de tigres, em um poema, em homenagem às cores da camisa e à garra do time em campo. Demoraria um pouco mais para que o apelido se tornasse totalmente estabelecido e para que sua imagem aparecesse na camisa a partir de 1970.
Uma vez formado, as cores do The Strongest se tornaram populares dentro e fora do campo, e os jovens da época rapidamente o tornaram seu favorito. Muito em breve, seus jogos seriam acompanhados por milhares de pessoas e o The Strongest começaria a escrever parte da história mais importante e gloriosa do futebol boliviano. Entre alguns eventos importantes e marcantes da história do clube estão os membros, torcedores, jogadores e diretores do The Strongest que trocaram sapatos e uma bola por rifles e uniformes, e que foram para a Guerra do Chaco contra o Paraguai entre 1932 e 1935. Nessa guerra, eles lutaram durante meses na batalha de Cañada Cochabamba ou Cañada Esperanza, mais tarde denominada Cañada Strongest em homenagem à coragem, à garra e à bravura daqueles que lutaram, morreram e venceram nessa batalha. Também podemos relembrar a trágica história do acidente aéreo que abalou o clube em 1969, no qual morreram os jogadores do Atigrados, a equipe técnica e um funcionário do clube. Esse acidente fez com que o Boca Juniors, da Argentina, emprestasse dois de seus jogadores para o time boliviano, criando assim uma bela amizade lembrada até hoje pelos atigrados. Apesar do acidente, e com um “tigre ferido”, o clube conseguiu ser campeão no ano seguinte com o apoio de seu povo, que tem sido ao longo da história uma das mais importantes e notórias listras na pele do Tigre.
La Gloriosa Ultra Sur, a torcida do The Strongest
Como em muitos países latino-americanos, o fenômeno das barras bravas, que começou na década de 1960 na Argentina, também se espalhou pela Bolívia. Foi na década de 1970 que surgiu uma das primeiras barras bravas do país: os Quirquigans (nome derivado da influência inglesa de hooligans), pertencentes ao clube San José de Oruro. Conta-se que esses torcedores de origem mineira causaram grande temor no país porque levaram dinamite para as arquibancadas e a detonaram na recepção do time, na ausência de fogos de artifício na época (Manzaneda, 2010). Alguns anos antes, na cidade de La Paz e nos arredores do estádio Hernando Siles, surgiram grupos de pessoas que passaram de simples espectadores de futebol a organizações formais de torcedores que começaram a se identificar com as cores, expressando seu fanatismo por meio de símbolos como bandeiras, roupas e cantos de incentivo em apoio ao Club The Strongest.
A ideia de formar uma base de torcedores composta por diferentes classes sociais, sem diferenças religiosas, concepções políticas, idade, sexo ou raça, já havia nascido. Com o passar do tempo, a barra “Presente y Unida la Torcida Atigrada” (Pérez, 2015) e “Parados, Unidos Todos Alentamos”, que ficava na bandeja alta da galeria sul do estádio, onde também se encontravam os torcedores do time rival Bolívar, foram consolidadas no final da década de 1980. A arquibancada sul foi montada durante um clássico de 1994 entre as duas equipes, vencido pelo The Strongest, e após uma série de incidentes com os torcedores adversários, os torcedores do Tigre os expulsaram para a arquibancada norte. Em seguida, os torcedores do Tigre decidiram se mudar, dessa vez para a parte inferior da galeria sul, agora sob o nome de Gloriosa Ultra Sur, como a torcida do The Strongest é conhecida atualmente. Hoje, dentro da mesma barra, existem diferentes grupos cujo objetivo é garantir a festa aurinegrista em todos os estádios do país e do exterior. Há alguns anos, nasceu entre eles a Brigada de Resistência Antifascista Aurinegrista (BARA), que tem sido parte ativa da Gloriosa Ultra Sur e, mais tarde, dos Stronguistas Antifascistas. Torcedores do Tigre del Pueblo que não apenas torcem e acompanham seu time, mas também levantam as bandeiras de luta contra o racismo, o machismo, a xenofobia e a homofobia nas arquibancadas e na sociedade boliviana.
Torcedores antifascistas na América Latina
Mas o que significa para um torcedor ser antifascista e que lugar esses grupos ocupam no futebol? Em geral, a inspiração antifascista é trazida da Europa para a América Latina e tem como base a estratégia da Antifaschistische Aktion promovida pelo Partido Comunista Alemão (KPD) entre 1932 e 1933. Daí vem a bandeira antifascista (cujo símbolo icônico é uma bandeira vermelha, aludindo a membros com tendências comunistas e anticapitalistas, e uma bandeira preta, que aludia a pessoas com ideologia anarquista e antissistema) e a insistência na inseparabilidade da luta contra o fascismo e o capitalismo. Para Bray (2018), o termo antifascista se refere a qualquer pessoa que lute contra o fascismo. Ele o explica como um método político; uma esfera de identificação individual e coletiva; e um movimento transnacional de correntes socialistas, anarquistas e comunistas. Hoje pode ser entendido como um movimento que se opõe e combate o atual crescimento da extrema direita e o violento ressurgimento fascista em várias partes do mundo, e seu argumento central é a necessidade de uma luta unida para detê-lo.
Na América Latina, esse avanço da extrema direita é latente e pode ser visto em diferentes países, como o Brasil e o Chile. Assim, como o futebol é um fenômeno social de massa, diferentes grupos buscam um espaço para mostrar seus ideais, como já aconteceu na Europa, onde a identificação com um time e uma torcida é uma identificação política. Há casos bem conhecidos de neofascismo e neonazismo ligados a times italianos como a Lazio, times espanhóis como o Real Madrid e o Ultra Sur, ou torcedores ucranianos fortemente ligados à extrema direita daquele país. Em contrapartida, surgiram torcedores antifascistas, como os Bukaneros do Rayo Vallecano ou o clube Hamburg St. Pauli, da Alemanha. Esse fenômeno de torcedores ativistas vem ganhando espaço na América do Sul em países como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Uruguai. O slogan não é apenas futebol sem violência e discriminação, sem misoginia, sem racismo, sem classismo, sem xenofobia, mas também no esporte e na sociedade em geral; não apenas atuando nos estádios, mas também nas ruas. Nesse aspecto, a Bolívia não ficou para trás, como exemplificado pela existência e persistência de facções antifascistas dos torcedores do clube The Strongest.
Stronguistas antifascistas
A bandeira do Che nas arquibancadas do estádio Hernando Siles não é uma coincidência. De fato, a bandeira está presente desde 2003 para acompanhar o The Strongest, um clube que desde sua origem está enraizado nas classes populares, sendo também um dos mais orgulhosos de suas raízes e símbolos indígenas. Isso se reflete em seu grito de guerra aimará, o famoso Huarikasaya Kalatakaya, que é entoado sempre que as cores amarela e preta e o espírito rubro-negro estão presentes. A frase incorporada por “Pancho Villa”, um famoso torcedor do clube, traduzida para o espanhol como “Rompe la piedra, tiembla la vicuña” (Quebre a pedra, a vicunha treme), tenta transmitir a força do inverno altiplânico, que é capaz de quebrar as rochas das montanhas e fazer tremer e chorar o animal mais resistente do lugar. Essa frase não só faz os stronguistas se arrepiarem, mas também enche os rivais de medo, pois The Strongest entra nos campos para quebrar e fazer chorar, assim como o vento faz quando atravessa as altas montanhas dos Andes. Até hoje, essa demonstração do costume do La Paz e do Strongest de expressar suas emoções e sensações em seu próprio idioma ainda está viva e bem viva. A origem do clube não pode ser perdida, e é por causa da história do próprio time e de sua representação histórica do povo que é necessário que o The Strongest e seus torcedores se envolvam novamente com a sociedade, de acordo com a facção antifascista. Na Bolívia, os clubes, especialmente os de futebol, são reduzidos a meros times para o entretenimento e a distração das massas, sem nenhum impacto na sociedade. Os Stronguistas Antifascistas se opõem a isso.
Essa facção da torcida The Strongest foi formada como tal em 2018 após algumas diferenças com outro grupo de esquerda, a Brigada Aurinegro de Resistência Antifascista (BARA), que existe desde 2011 e tem orientações diferentes. Devido a essas diferenças, nasceu esse grupo antifascista independente, com muitos membros vindos da BARA. Eles são fãs na faixa dos 20 e 30 anos que se identificam com o antifascismo. Para eles, isso significa ser totalmente anticapitalista e anti-imperialista, o que é absolutamente necessário na América Latina. Eles odeiam o futebol moderno (ou futebol de mercado), pois pensam e vivem esse esporte como mais do que um negócio e o atual reduz a participação dos torcedores, especialmente na Bolívia, onde “quem tem a maior carteira é quem domina o clube”, algo que está se tornando cada vez mais comum no sul da América. Enquanto o BARA se manteve vivo, foram penduradas faixas (panos) em solidariedade e apoio aos povos da Palestina e da Venezuela, contra o imperialismo ou contra o saque e a conquista da América.
Hoje, com o futebol interrompido pela pandemia e como resultado das ações do governo de fato, as ações dos Stronguistas têm sido limitadas. No entanto, eles se encarregaram de expressar seu descontentamento e levantar suas bandeiras de luta em plataformas e redes. Por exemplo, eles se posicionaram contra o racismo, apoiaram as minorias sexuais e os povos indígenas e sua resistência, e repudiaram a repressão ocorrida em novembro de 2019 em sua terra natal e também no Chile, entre outras causas.
Na Bolívia, o movimento antifascista vem assumindo bandeiras ao longo dos anos, sempre ao lado das classes populares, ao lado do povo mineiro e camponês. Após o golpe de Estado em novembro de 2019, recuperou a força, mas, como resultado das circunstâncias globais, as ações foram reduzidas (por enquanto), mas não a força e a convicção. “Voltaremos como Stronguistas Antifascistas para continuar lutando por causas justas para o povo desde nossas trincheiras, seja nas arquibancadas ou nas ruas”.