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Jornalista incomoda a extrema direita indiana
Extrema Direita

Jornalista incomoda a extrema direita indiana

Prabir Purkayastha criou uma publicação vibrante em Delhi, ligada a movimentos sociais e bem-sucedida. Agora, aos 78 anos, ele está preso sob uma lei infame. O episódio revela muito sobre a natureza, os métodos e as vulnerabilidades do regime de Narendra Modi

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Tempo de leitura: 10 minutos.

Foto: Linkedin

Por Antonio Martins

Em dezembro de 1984, um jovem engenheiro indiano produziu um relatório que horrorizou o mundo. Como fundador do Delhi Science Forum (DSF), ele foi encarregado, junto com um colega da instituição, de investigar um vazamento de gás na fábrica da multinacional americana Union Carbide, na região central da Índia. O trabalho meticuloso e sensível que eles realizaram serviu de base para os relatórios que descreviam o que foi, sem dúvida, o maior crime industrial da história – a tragédia de Bhopal. A negligência da corporação com um antigo armazém onde eram produzidos pesticidas facilitou o vazamento de uma substância altamente letal – o isocianato de metila. A sombra da morte se espalhou pela cidade. Cerca de 20 mil pessoas foram envenenadas e morreram nas horas e nos dias que se seguiram. Outras 600 mil sofrem com as consequências até hoje.

Prabir Purkayastha, o engenheiro da época, está agora preso sem julgamento em Délhi, capital da Índia. Ele foi o fundador e é o editor de um site – Newsclick – que incomodou o governo do primeiro-ministro Narendra Modi. As circunstâncias de sua prisão lançam alguma luz sobre as peculiaridades da extrema direita indiana, que participa do BRICS e compra petróleo russo (contrariando as sanções ocidentais), mas ao mesmo tempo aceita o abraço de Washington, que a vê como um contrapeso à China na Ásia.

Em 3 de outubro de 2023, uma campanha de perseguição contra a imprensa independente, iniciada pelo governo Modi pouco mais de um ano antes, se intensificou. A polícia de Delhi invadiu as casas de cerca de 50 jornalistas e apreendeu seus computadores e telefones celulares. O alvo central era o Newsclick. Ele ganhou audiência e repercussão surpreendentes ao produzir notícias e análises sobre eventos na Índia e no mundo, sustentando uma interpretação claramente anticapitalista. Também se aliou a movimentos sociais importantes, como o grande protesto nacional de agricultores de 2020-2021, que desferiu um duro golpe no projeto de Modi ao forçá-lo a abandonar um conjunto de reformas neoliberais no campo.

Além de perderem seus equipamentos, Prabir e Amit Chakravarth, um dos administradores, foram levados sob custódia “preventiva”. Essa condição, que inicialmente poderia ser estendida por um máximo de 6 dias, foi prorrogada indefinidamente.

A “base” apresentada pelo governo Modi para o encarceramento é a mais frívola possível: um artigo de jornal estrangeiro. Em 5 de agosto do ano passado, o The New York Times publicou um artigo sobre uma suposta rede de mídia internacional que apoiaria a China.

Ela seria patrocinada por um milionário americano. Neville Roy Singhan, que fez fortuna no boom das plataformas de Internet, teria decidido apoiar publicações com posições editoriais favoráveis a Pequim com sua riqueza. Poderia haver ilegalidade nesse gesto? A mídia favorável à ordem capitalista recebe constantemente contribuições de bilhões de dólares de anunciantes locais e internacionais interessados em preservar o status quo.

Um cenário político peculiar ameaça as liberdades civis e políticas na Índia. Formalmente, o país é uma democracia. Há eleições regulares e liberdade partidária (os comunistas estão no poder em três dos 31 estados). Mas esse ambiente vem se desgastando desde 2014, quando Modi chegou ao poder central. O primeiro-ministro aposta no forte crescimento econômico (aumento de 7% do PIB em 2023). Mas ele busca legitimidade restringindo o debate de ideias e propagando um nacionalismo primitivo e, especialmente, um supremacismo hindu intolerante que é hostil à dissidência.

A prisão sem julgamento de Prabir Purkayastha é um exemplo. Ela se baseia na chamada Lei de Prevenção de Atividades Ilícitas (UAPA). Existente desde 1963, ela foi completamente reformulada pelo Congresso em 2019, em um processo extremamente rápido (24 dias no total, em ambas as casas legislativas). O pretexto foi o “contraterrorismo”, mas o escopo é muito mais amplo.

De acordo com o novo texto, o governo tem o poder de designar grupos ou indivíduos como suspeitos de terrorismo – e de detê-los durante as investigações. As bases para a “suspeita” podem ser tão frágeis quanto as alegadas contra o editor do Newsclick. A lei também autoriza o confisco dos bens dos acusados – o que já aconteceu com a publicação. Na véspera do Natal de 2023, as contas bancárias do jornal foram congeladas.

Os salários e outros compromissos não foram pagos desde então. A tentativa de sufocamento é evidente.

Em sua versão pós-Modi, a UAPA foi considerada, por um relatório especial da ONU, como uma violação de vários artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. A principal ameaça vem justamente das detenções preventivas facilmente prorrogáveis, como a que afeta Prabir. Dados do governo indiano apontaram, em 2022, o encarceramento político em massa resultante dessa disposição. Em quatro anos, 24.134 pessoas foram presas com base na lei. Dessas, apenas 589 foram levadas a julgamento (386 das quais foram absolvidas). 23.545 permaneceram sob custódia – ou 97,5% do total…

Em maio próximo, haverá eleições parlamentares na Índia. No complexo sistema eleitoral do país, Narendra Modi tem grandes chances de conquistar um terceiro mandato. Em termos de porcentagem de votos, sua vantagem sobre a coalizão opositora de centro-esquerda (I.N.D.I.A) é pequena – entre 2,4 e 4 pontos percentuais, de acordo com as pesquisas. Mas a projeção para o Parlamento sugere que o bloco liderado pelo Bharatiya Janata Party (BJP) terá uma maioria confortável e pelo menos cem assentos a mais do que seu principal adversário.

Ainda muito pobre (seu PIB per capita é 4,3 vezes menor que o do Brasil), a Índia tem amplo espaço para crescimento. Esse potencial é favorecido pelo apoio estratégico – econômico e militar – oferecido pelo Ocidente (especialmente os EUA), que vê o país como uma possível base em seu esforço para cercar a China. Modi busca expandir esse movimento incentivando a entrada de transnacionais e de capital estrangeiro na infraestrutura. As relações com Washington foram particularmente intensas, como esperado, quando Donald Trump ocupou a Casa Branca. Em agosto de 2017, os EUA, a Índia, o Japão e a Austrália relançaram uma aliança chamada Quad, vista alternativamente como “uma resposta à Iniciativa Cinturão e Rota da China” ou “uma OTAN da Ásia”.

Biden manteve a abordagem, selada em junho de 2023, quando o primeiro-ministro indiano foi recebido em Washington com rara cordialidade. A revista The Economist comemorou o evento, dizendo que esperava que a parceria entre os dois países fosse “a mais importante do século XXI”…

Na Índia, os ataques às liberdades continuam, como mostra a prisão de Prabir. Talvez ainda mais chocante seja a exploração, pelo BJP, de um chauvinismo antimuçulmano que frequentemente recorre à violência extrema.

Isso foi fundamental durante a ascensão contínua do partido desde 1984 (quando tinha apenas duas cadeiras no Parlamento). Ele está se tornando mais vivo. Em 22 de janeiro passado, Modi lançou sua campanha de reeleição inaugurando, na cidade de Ayodhya, um templo de US$ 220 milhões em homenagem à divindade Ram – uma das mais sagradas do hinduísmo. Esse foi o ponto culminante de uma campanha de supremacia de trinta anos.

Em 1992, uma enorme horda de fanáticos hindus destruiu, com golpes de martelo e picareta, a mesquita Babri Masjid, que ocupava o mesmo local. Dez anos depois, após uma peregrinação ao local, houve uma onda generalizada de ataques contra muçulmanos, sendo Modi – então líder do governo do estado de Gujarat – o principal instigador. Mais de 1.000 pessoas foram mortas. Desde então, o BJP tem mantido, entre seus pontos centrais do programa, a construção do templo hindu nas ruínas da mesquita.

E não parou por aí. Seu governo vem implementando, desde 2014, uma política de hinduização forçada que inclui a restrição dos direitos de cidadania dos muçulmanos, a reescrita de livros escolares e a ampla colaboração com o grupo paramilitar hindu Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), envolvido em vários episódios de violência (do qual o próprio Modi é membro)…

Prabir Purkayastha personifica uma Índia que se opõe a essa intolerância e se baseia na tradição de Mahatma Gandhi, para quem a composição multiétnica do país era um de seus pontos fortes. Aos 78 anos, o editor do Newsclick tem uma trajetória marcada por lutas sociais, mas também pela curiosidade sobre o mundo e as possibilidades de transformá-lo. Ele se filiou ao Partido Comunista da Índia desde 1970. Em sua juventude, além do Delhi Science Forum, fundou a All India People’s Science Network (ambos ainda ativos e vibrantes hoje) e coordenou o Delhi Literacy Committee.

Formou-se em engenharia pelas universidades de Calcutá e Allahabad e ingressou, em 1975, na School of Computing and Systems Science da Jawaharial Nehru University. Trabalhou nos setores de TI e energia por mais de 40 anos e participou de comitês estaduais indianos relacionados a essas questões. Em um livro de memórias lançado semanas atrás [“Keeping up the good fight”], com o autor preso, ele escreve: “Descobri que tinha três ‘paixões’ e que sempre viveria com elas: Ciência, tecnologia e, é claro, política. Só com o tempo ficou claro como elas se combinariam nas décadas seguintes”.

As paixões se combinaram na luta incansável de Prabir para libertar o conhecimento das barreiras de mercado que limitam sua circulação. Entre outras iniciativas, ele articulou na Índia o movimento internacional Knowledge Commons, que propõe alternativas ao conceito e aos mecanismos de “propriedade intelectual” para a Free Software Foundation.

Eu o conheci em 2003. Prabir foi um dos arquitetos de um experimento político extremamente complexo: trazer para a Índia o Fórum Social Mundial (FSM), que havia surgido na virada do século em Porto Alegre e se tornado um encontro polifônico daqueles que buscavam alternativas ao neoliberalismo. A tarefa era ainda mais assustadora devido à imensa diversidade do país, onde coexistem uma profusão impressionante de etnias, idiomas, culturas regionais e tradições políticas. Lembro-me de sua maneira discreta de coordenar: falando pouco, escolhendo momentos decisivos; incorporando ideias alheias em suas intervenções, evitando o protagonismo explícito; cultivando uma ironia sutil e um sorriso discreto.

O sucesso superou todas as expectativas. O FSM-2004, em Mumbai, deu voz a movimentos de toda a Índia, contribuiu para a unidade da esquerda e incluiu muitos países asiáticos e africanos no movimento que não puderam participar em Porto Alegre.

Os tempos mudaram. No Ocidente (e também na Índia), a extrema direita tomou a ofensiva. Mas os dados ainda estão rolando.

Preso pouco antes de se tornar um octogenário, Prabir não joga a toalha. Ele recusa a condição de vítima. Em suas memórias, ele explica: “A vitimização nos rouba o papel de participantes na criação da história. Ela nos reduz a meros objetos. Em vez disso, eu gostaria de assumir a perspectiva das pessoas que fazem história. Sim, os governos da época controlam poderes que parecem diminuir os indivíduos e suas organizações. Mas são as pessoas e suas ações que, em última análise, determinam a História; não como e quanto gostaríamos, mas de maneiras que nem as pessoas nem seus governantes podem prever”.

E ele conclui, talvez com a mesma ironia que demonstrou em Mumbai: “Sou tão velho quanto a república indiana. Em minha vida de mais de 75 anos, aprendi uma ou duas coisas – talvez até três. Aprendi como posso fazer parte do meu país, rico e diversificado, e ao mesmo tempo fazer parte de um mundo ainda maior, mais complexo e fascinante. Tudo o que preciso fazer é lutar por um mundo melhor para todos”.

Esse ser humano, Prabir Pukayastha, precisa ser livre.

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