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Cabanagem: a resistência do povo paraense
Antifascismo

Cabanagem: a resistência do povo paraense

A revolta ocorrida no Pará foi o maior conflito armado interno da história brasileira

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Via Brasil Real é um País que Luta

Tempo de leitura: 10 minutos.

Foto: O Estado/Reprodução

Batuques ressoam na luta
E libertam o povo da dor
Cantos insuflam esperança
Que soa num tempo opressor

A revolta está na mente, é gente que tem fome
Tem sede de justiça, agora é bicho-homem
Nesse mundo de resmungo, sem nenhum alento
Ó pátria
Quem tu és, Brasil?

Ainda te chamam de preto-crioulo
Maria mulata foi injustiçada
Quantas dores? Quantas vidas vão calar?
Tapuio sem histórias pra contar

É mestiço assolado, sem lar
Vai pra rua o povo cantar

A certeza da vitória? Flores no chão
Pelo campo verdejante, no beiradão
Vou seguindo carregando a minha cruz
Em luta pela nova América
Amazônida, mestiça, indígena

Rebelados, aguião da insurreição
Louvantes à mercê, em oração
O Sol fulge a face da revolução
Rufam tambores pela mãe África
Amazônida, mestiça, indígena

Carabinas, morteiros, devoram teus sonhos
Quem é essa gente que cai pelo chão?
Por um novo tempo, futuro incerto
Te dão uma terra, um lote, um grão
Levanta cabano o que resta é lutar
Atacar!

Fogo! É vez do gueto
Revolta insana pela vida
Sem miséria, ideologia
Avante povo de alma vermelha

Canto, bato no peito
O meu folguedo é garantido
É liberdade, é igualdade
Amazônia do povo de alma vermelha

Vai pra rua o povo cantar!

(Cabanagem, Boi Garantido, 1998)

Estudada como uma da série de revoltas ocorridas no país no período regencial, infelizmente a Cabanagem é relatada de forma superficial no currículo escolar brasileiro e ainda continua pouco conhecida fora da região Norte.

Uma verdadeira guerra civil, que culminou com a morte de enorme parcela da população da então Província do Grão-Pará, a Cabanagem representa motivo de orgulho até os dias de hoje para o povo paraense, que se autodenomina orgulhosamente de povo cabano. Influenciada pelos ideais liberais da Revolução Francesa, foi uma revolta popular que contou com a participação não só das elites locais, como outros movimentos da época, mas também das populações indígenas e ribeirinhas que se levantaram contra o poder do Império brasileiro. 

Seu nome provém das cabanas nas quais vivia esse povo trabalhador que estava em condições de semi-escravidão, em uma província distante da centralizadora capital no Rio de Janeiro. Também era uma região muito próxima da antiga metrópole portuguesa, com forte presença de elementos reacionários e restauracionistas do antigo colonialismo.

Presente no imaginário popular da classe trabalhadora paraense como exemplo de revolta justa contra a miséria e o abuso dos governos, a Cabanagem foi um dos momentos históricos mais importantes da história do Brasil.

A dinâmica da guerra

Mesmo após a independência do Brasil em 1822, a província do então Grão-Pará empunhou armas para expulsar os portugueses colonialistas que insistiam em se manter na região. Por vários anos, a luta se travou na região e levou a processos de resistência popular mais amplos, como a formação dos mocambos espécie de quilombos construídos por escravizados que fugiam do cativeiro em meio ao conflito social.

Nomes como Eduardo Angelim e dos irmãos Vinagre marcaram este período de luta. Após a vitória, a formação do governo provincial imposto pelo Primeiro Reinado de D. Pedro I marginalizou diversas destas lideranças locais a partir das tentativas da centralização vindas do Rio de Janeiro. As decisões administrativas eram então tomadas por políticos de outras regiões indicados pelo poder imperial, provocando enorme descontentamento no conjunto da população local.

Tal cenário, aliado a uma situação de condições ecônomicas e de vida muito ruins para a maioria da população, levaram aos antecedentes da Cabanagem com a revolta militar de uma guarnição em Belém em 1981. A prisão de seus líderes aumentou ainda mais a indignação contra as forças imperiais, aumentando a pressão social contra o governo provincial vindo de fora. As ideias de uma federação política e de maior justiça redistributiva perante o governo central eram cada vez mais frustradas, aumentando ainda mais a ebulição e indignação social que se apresentava.Somou-se a isso também a prisão dos jornalistas de oposição intitulado Sentinela Maranhense, que fazia duras críticas ao governo provincial.

Com o aprofundamento da repressão, em 1834 aconteceu o estopim da revolta quando Batista Campos publicou – sem autorização do governo – uma carta do bispo de Belém criticando políticos regionais. O bispo se refugiou em uma fazenda onde se reuniram figuras como as ditas acima, com os irmãos Vinagre e o jornalista Eduardo Angelim. Logo após, reuniram outros rebeldes na mesma fazenda e, ao perceberem o perigo do ataque pelas tropas governistas, abandonaram a fazenda.

Porém, um dos revoltosos, Félix Clemente Malcher, foi preso e esse evento jogou ainda mais combustível na já explosiva situação do momento. Um dia depois, Malcher foi libertado, mas nessa mesma madrugada as colunas rebeldes formadas por negros, indígenas tapuios e cabanos, liderados por Francisco Vinagre e Malcher, avanaçaram e dominaram a sede de governo de Belém e a gurnição militar da cidade. Essa ação terminou por tomar o poder de fato na região, nomeando Vinagre como Comandante das Armas da Cabanagem e Malcher como presidente da província, além de se apossar de todo o arsenal local.

Porém, o governo rebelde não teve vida longa porque Malcher, um dono de engenhos de açúcar, não se identificava com os anseios populares e foi deposto um mês depois porque foi considerado traidor ao apoiar as exigências feitas pelo governo. Enquanto as massas populares avançavam num processo de radicalização cada vez maior, parte de sua liderança buscava a pactuação e a manutenção das relações com o governo do Império. O estopim da crise entre as duas frações aconteceu quando Malcher decretou a prisão de Angelim, culminando com Malcher assassinado e tendo seu cadáver arrastado nas ruas. Assume como governador então Francisco Vinagre.

A Igreja apoiou o governo e procurou a pacificação, declarando os rebeldes cabanos como “seres divinos enviados para proteger os menos favorecidos”. Com essa dinâmica, Vinagre aceitou entregar o governo para português Manuel Rodrigues tendo recebido promessas de anistia. Porém, a massa dos rebeldes não confiou no cumprimento do acordo, mantendo as armas e fugindo para o interior..

Dando razão às inquietações dos rebeldes, Rodrigues pediu a prisão de Vinagre, gerando mais indignação ainda entre os cabanos, que fugiram para o interior para reorganizar suas tropas e atacaram Belém novamente em agosto. Após um intenso conflito de dias que levou à morte de vinagre, os cabanos retomaram a capital, empossando Angelim presidente da província.

O fim da revolta

Em março de 1836, foi nomeado um novo presidente para o Grão-Pará pelo governo central e se iniciou o processo de repressão. Os navios avançaram para atacar a capital da província, que então estava assolada pela desorganização administrativa causada pelo conflito, além da fome e de epidemias. Realizou-se um bloqueio naval que obrigou os cabanos a a fugirem em canoas novamente para o interior

A capital foi esvaziada e os soldados do presidente da Província a ocuparam. Após uma perseguição entre os igarapés locais, Angelim foi preso e enviado para a prisão na ilha de Fernando de Noronha. Entretanto, a Cabanagem continuou com combates nas florestas até 1840, quando foram totalmente derrotados.

A rebelião se expandiu por uma enorme área territorial, com combates e perseguições acontecendo inclusive no interior e nas divisas da província. Apesar da falta de documentos confiáveis, presume-se que mais de um terço da população da província da época pereceu durante o conflito. Além disso, nações indígenas inteiras, como os murás e os mauês praticamente foram dizimadas.

Por fim, para compreender mais profundamente todo este movimento revolucionário é interessante também notar o aspecto territorial da Cabanagem a partir da perspectiva da identidade regional. Segundo a obra de Magda Ricci:

A revolução social dos cabanos que explodiu em Belém do Pará, em 1835, deixou mais de 30 mil mortos e uma população local que só voltou a crescer significativamente em 1860. Este movimento matou mestiços, índios e africanos pobres ou escravos, mas também dizimou boa parte da elite da Amazônia. O principal alvo dos cabanos era os brancos, especialmente os portugueses mais abastados. A grandiosidade desta revolução extrapola o número e a diversidade das pessoas envolvidas. Ela também abarcou um território muito amplo. Nascida em Belém do Pará, a revolução cabana avançou pelos rios amazônicos e pelo mar Atlântico, atingindo os quatro cantos de uma ampla região. Chegou até as fronteiras do Brasil central e ainda se aproximou do litoral norte e nordeste. Gerou distúrbios internacionais na América caribenha, intensificando um importante tráfico de idéias e de pessoas.

Contrastando com este cenário amplo, a Cabanagem normalmente foi, e ainda é, analisada como mais um movimento regional, típico do período regencial do Império do Brasil. No entanto, os cabanos e suas lideranças vislumbravam outras perspectivas políticas e sociais. Eles se autodenominavam “patriotas”, mas ser patriota não era necessariamente sinônimo de ser brasileiro. Este sentimento fazia surgir no interior da Amazônia uma identidade comum entre povos de etnias e culturas diferentes. Indígenas, negros de origem africana e mestiços perceberam lutas e problemas em comum. Esta identidade se assentava no ódio ao mandonismo branco e português e na luta por direitos e liberdades.

A Cabanagem demonstrou a disposição de luta popular do povo brasileiro mesmo em condições profundamente adversas, levantando bandeiras com a democracia e justiça social em um momento no qual ainda vivíamos uma realidade monarquista e escravista no país. Deixamos aqui nossa homenagem a todos os mártires cabanos. Viva a Cabanagem!

Saiba mais

Tempos de revoltas no Brasil Oitocentista: Ressignificação da cabanagem no baixo Tapajós (1831-1840) (Wilverson Rodrigo de Melo/UFPE)

Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840 (Magda Ricci / UFPA)

Entre batalhas e papéis: a cabanagem e a imprensa brasileira na menoridade (1835-1840) (Luciano Barbosa Lima / UFPA)

Memórias em movimento histórias de luta e resiliência: faces cabanas da identidade Amazônica (Agnaldo Aires Rabelo / UFPA)

Verbo de fogo: uma leitura da história, do imaginário amazônico e do social em Romanceiro da Cabanagem (João Alfredo Guimarães Garcia / UFPA)

Cabanagem: linhas da história e entrelinhas da literatura (Marcos Frederico Kruger Aleixo / UFAM)

As representações da Cabanagem no livro didático (Dagmar Manieri / UFT)

Revolução cabana e construção da identidade amazônida (Denise Simões / UEPA)

Ressignificação da cabanagem no baixo Tapajós (1831-1840) (Flávio Weinstein Teixeira / UFPE)

Rios Vermelhos: perspectivas e posições de sujeito em torno da noção de ‘cabano’ na Amazônia em meados de 1835 (Marta Rosa Amoroso / USP)

Reflexões sobre as memórias da Cabanagem no Pará (Pâmela Oliveira Caraciolo / UFF)

“Sonho Cabano”: Memória da Cabanagem e democracia no carnaval paraense (Edilson Mateus Costa da Silva / SEDUC PA)

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