
A Revolta dos Marinheiros de 1964
O confronto entre as autoridades da Marinha do Brasil e a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), ocorrido de 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro
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A Revolta dos Marinheiros foi um confronto entre as autoridades da Marinha do Brasil e a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), ocorrido de 25 a 27 de março de 1964, no Rio de Janeiro. Os integrantes da AMFNB, uma entidade assistencial e sindical, não estavam armados e se insubordinaram para reivindicar mudanças na Marinha, contando com o apoio de movimentos de esquerda. A Marinha cercou-os no Sindicato dos Metalúrgicos, e a crise se espalhou para o Arsenal de Marinha e para os navios da Armada. Os marinheiros imaginavam-se vitoriosos e acreditavam na possibilidade da concessão de suas reivindicações. No entanto, a imprensa denunciou a revolta em nome do que acusavam ser uma desagregação causada pela indisciplina. O Jornal do Brasil afirmou que as reivindicações dos marinheiros poderiam ser justas, mas que jamais deveriam ser defendidas pelo caminho da indisciplina.
A mediação feita pelo governo de João Goulart provocou a ira dos oficiais que planejavam o golpe de Estado que se seguiria, tornando-se um de seus antecedentes diretos. A revolta atingiu um ponto nevrálgico para a estabilidade do regime político, pois o foco do debate político acirrado ao redor das reformas de base defendidas por Goulart passou para a questão da disciplina militar, e sua resposta à foi apontada como excessivamente tolerante. O presidente foi duramente acusado de não manter o princípio da autoridade. Apesar das críticas, Goulart não recuou e compareceu a uma reunião de praças no Automóvel Clube, na presença de sindicalistas e marinheiros participantes da revolta.
O desfecho agitou os oficiais e, especialmente, os da Marinha: a escolha de um novo ministro sob influência dos sindicalistas, a detenção dos marinheiros em instalações do Exército, em vez da Marinha, e uma passeata provocativa com os almirantes nos ombros. A anistia foi vista como mais ofensiva do que o próprio discurso do cabo Anselmo, presidente da AMFNB. A Revolta dos Sargentos do ano anterior, por mais grave que fosse, não teve tamanha repercussão, pois seus responsáveis foram punidos.
Os oficiais da Marinha, após assistirem ao desenrolar da situação, publicaram um manifesto no Clube Naval no dia 29. O documento denunciou “o golpe aplicado contra a disciplina na Marinha ao admitir-se que uma minoria insignificante de subalternos imponha demissão do Ministro e autoridades navais e se atreva a indicar substitutos. Em vez de promover a devida punição disciplinar, licenciam-se marinheiros amotinados.” Declaravam que isso representava uma ameaça a todas as instituições do país. Eles se diziam dispostos a resistir por todos os meios às supostas tentativas de “comunização” do Brasil. No dia seguinte, os oficiais do Exército no Clube Militar manifestaram solidariedade à Marinha.
A AMFNB fazia parte dos movimentos de praças que surgiram no início da década de 60 e esteve relacionada com a Revolta dos Sargentos de 1963, da qual muitos de seus membros participaram. Era uma associação de classe representando uma categoria de baixa renda, enfrentando condições de trabalho precárias e sem direitos básicos, como o voto, além de sofrer com a desigualdade discrepante em relação aos oficiais. Durante os dois anos após sua fundação, em 1962, a associação cresceu em membros e se tornou mais combativa, aproximando-se do presidente Goulart e de questões políticas mais amplas, para além dos interesses imediatos da corporação, como as reformas de base. Os oficiais temiam sua potencial indisciplina e não toleravam sua politização, ao contrário das articulações políticas reacionárias do oficialato.
O aniversário de dois anos da associação, celebrado no dia 25 de março, ocorreu no Sindicato dos Metalúrgicos. Ao tomarem conhecimento da prisão de diretores por declarações dadas no dia 20, decidiram permanecer em assembleia até que suas demandas fossem atendidas. Silvio Mota, ministro da Marinha, ordenou prontidão rigorosa, exigindo que os marinheiros estivessem em suas unidades, mas eles desobedeceram. No dia 26, o ministro tentou invadir o Sindicato com fuzileiros navais e reforços do Exército. O comandante dos fuzileiros, Cândido Aragão, foi exonerado por se recusar a atacar. A primeira tentativa de invasão falhou quando parte dos fuzileiros se juntaram aos revoltosos, enquanto a segunda operação foi cancelada para permitir negociações. Ocorreu confronto e sabotagem nos navios, e marinheiros foram atacados no Arsenal de Marinha. João Goulart respondeu ao levante com a anistia aos marinheiros e a nomeação de Paulo Mário da Cunha Rodrigues para o ministério da Marinha. Sua presença na reunião do dia 30 no Automóvel Clube foi criticada pela oposição e vista pelos oficiais como conivência com a quebra da disciplina militar, utilizada como justificativa para o golpe que o depôs no final daquele mês.
Após o golpe, os envolvidos foram expulsos ou licenciados da Marinha e processados na Justiça Militar. Parte do grupo, liderado por ex-diretores, se uniu a organizações guerrilheiras contra a ditadura militar, mantendo a coesão dos tempos da AMFNB. Após a Lei da Anistia de 1979, ex-marinheiros e fuzileiros navais lutaram por anos na Justiça e no Congresso por indenizações e reintegração à reserva remunerada, organizando-se na Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia (UMNA).
O episódio da Revolta dos Marinheiros em 1964 é central para que se faça uma justa caracterização da centralidade da luta dos praças das forças armadas na disputa política no país, escancarando as contradições existentes mesmo dentro do braço armado do Estado, setor estratégico de atuação para os socialistas na disputa do poder. A história daqueles que enfrentaram o oficialato e se colocaram ao lado de um projeto de soberania nacional, partindo de suas reivindicações imediatas, deve ser mantida viva como memória de que nosso passado e presente foram e são atravessados por enfrentamentos que questionam a ordem dominante e disputam outro futuro.
Saiba Mais
Castro, Robert Wagner Porto da Silva (agosto–dezembro de 2017). «Muito além da “hierarquia e disciplina”: resistência e representatividade da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (1962-1964)». Porangatu: UEG. Revista de História da UEG.
Gandra, Edgar Ávila; Castro, Robert Wagner Porto da Silva; Silva, Thiago Cedrez (outubro de 2014). «No rumo da memória: radicalização do movimento dos marinheiros em 1964». Belo Horizonte: PUC Minas. Cadernos de História.
Rodrigues, Flávio Luís (2017). Marinheiros contra a ditadura brasileira: AMFNB, prisão, guerrilha-nacionalismo e revolução?