A greve dos metalúrgicos do ABC, ocorrida em 1979, foi um marco fundamental na história do movimento operário no Brasil, onde o movimento paredista foi capaz de acumular forças para um movimento de luta política de resistência e enfrentamento ao regime militar. Esse episódio, protagonizado pelos trabalhadores organizados no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, à época presidido por Luis Inácio Lula da Silva, o Lula, ficou gravado na memória política do país não apenas por suas reivindicações trabalhistas, mas pelo impacto político e social que teve, abrindo caminho para novas formas de organização dos trabalhadores e para o questionamento direto ao regime autoritário que governava o Brasil desde 1964.
Em 1979, o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar. Apesar do discurso de modernização e desenvolvimento econômico defendido pelo regime, a política do chamado “milagre econômico” havia trazido consigo graves consequências sociais. A população enfrentava uma forte alta da inflação e a deterioração das condições de trabalho, especialmente nos setores industriais, onde a exploração dos trabalhadores era intensificada para sustentar o crescimento do PIB. Esse plano econômico era combinado à repressão política, com a ausência de liberdades democráticas e a perseguição de opositores ao regime. Para o regime, era fundamental frear e controlar a resistência organizada da classe trabalhadora.
Os trabalhadores da região do ABC Paulista, especialmente os metalúrgicos, compunham uma parcela expressiva e estratégica da mão de obra brasileira, atuando em grandes empresas como a Volkswagen, Ford, Scania e Mercedes-Benz. Essa parcela da classe passou a vivenciar uma realidade brutal de perda do poder aquisitivo, além de condições de trabalho precárias e de baixa remuneração. Diante disso, o movimento sindical começou a se reorganizar. Em março de 1979, após negociações frustradas com a patronal, os metalúrgicos do ABC entraram em greve exigindo um reajuste salarial de 78,1%. O movimento rapidamente ganhou adesão, paralisando cerca de 200 mil trabalhadores.
O movimento grevista de 1979 no ABC se transformou em um embate político direto com a ditadura militar. Desde o golpe de 1964, o governo militar atuava para reprimir qualquer tipo de manifestação ou movimento que pudesse questionar sua autoridade ou colocar em risco a “estabilidade econômica”. Sob a justificativa de que as greves prejudicavam o desenvolvimento nacional, o governo impôs uma série de restrições à atividade sindical, intervindo nos sindicatos, perseguindo e prendendo suas lideranças. No entanto, a greve de 1979 ultrapassou os limites estabelecidos pelo regime, criando um cenário inédito de confronto e reorganização sindical, onde o chamado novo sindicalismo, alicerçado na independência política e livre consciência dos trabalhadores atropelou o sindicalismo oficial corporativo que estava a serviço da estabilidade política do regime militar.
Lula se destacou como liderança nesse processo. Ele emergiu como uma figura articulada à frente do sindicato, capaz de mobilizar milhares de trabalhadores e de dialogar com a sociedade civil em um momento de censura e repressão. Em abril de 1979, a pedido da Fiesp, que havia se negado a negociar com os trabalhadores e firmado um acordo com a Federação dos Metalúrgicos de São Paulo, dirigida por setores submissos ao regime militar, o Tribunal Regional do Trabalho decretou a ilegalidade da greve. No dia 23, a sede do sindicato foi ocupada por uma intervenção instaurada pelo Ministério do Trabalho que buscava dissolver o movimento. Lula, juntamente com outros líderes sindicais, foi preso e processado. A greve, declarada ilegal, havia se tornado caso de polícia para o regime. A mobilização do efetivo policial para reprimir os trabalhadores nos bairros operários e desarticular o movimento foi grande. No entanto, a repressão não conseguiu enfraquecer o movimento, que continuou a crescer e atrair a atenção de outros setores da sociedade civil e da opinião pública. A organização e disposição de luta dos trabalhadores se demonstrou resiliente frente às investidas da ditadura.
A greve do ABC chamou a atenção da mídia e da sociedade, durante aqueles dias tornou-se o centro político do país e o governo militar passou a enfrentar a pressão não apenas dos trabalhadores sindicalizados, mas também de setores progressistas da Igreja Católica, intelectuais, artistas e do movimento estudantil. Após muita luta, os trabalhadores conquistaram reajuste salarial de 63%, saindo da greve fortalecidos. A mobilização dos metalúrgicos evidenciou que o regime não conseguiria conter indefinidamente o conjunto dos trabalhadores e contribuiu para o enfraquecimento da ditadura na medida em que avançava a consciência das massas trabalhadoras em sua própria capacidade de organização e luta. Esse movimento marcou, assim, a abertura de um novo ciclo na organização sindical e política dos trabalhadores, uma vez travado o confronto contra uma ordem econômica, sustentada por um regime político que colidia com a greve.
A proporção da greve dos metalúrgicos do ABC, ao paralisar as atividades de um setor estratégico na política econômica da ditadura militar e reivindicar o aumento substantivo e necessário dos salários, emparedou o sindicalismo oficial controlado pelo Estado e o próprio regime, colocando na ordem do dia a necessidade da reorganização sindical e a criação de novas formas de organização das massas trabalhadoras que desse conta de suas tarefas agora políticas, superando sua dimensão econômica. Nesse sentido, o novo sindicalismo foi fundamental na criação, 4 anos depois, da Central Única dos Trabalhadores, a CUT, entidade que representou à época um salto qualitativo na organização dos trabalhadores que se alicerçava em um programa classista e independente, unificando as diferentes categorias da classe em um programa comum. O avanço da consciência promovido pela intervenção do movimento de trabalhadores também se expressou na criação de um partido dos trabalhadores em 1980, o PT, que surge à época como fruto dos acúmulos de processos como foram a greve de 1979, com vocação de massas.
O saldo organizativo e, sobretudo, político da greve dos operários do ABC paulista nos dá pistas ainda hoje, quando nos defrontamos com uma crise profunda do capitalismo marcada pela degradação das condições de vida e de trabalho, por um estágio de emergência climática profunda, guerras e ascensão da extrema-direita, acompanhada e combinada com uma crise de direção profunda, onde as principais organizações surgidas durante aquele processo se adaptaram à ordem, como a própria CUT e o PT, de que a aposta dos antifascistas e anticapitalistas deve estar fundamentalmente na capacidade dinâmica de mobilização da classe trabalhadora e dos oprimidos como central na disputa da correlação de forças e da construção de instrumentos organizativos e programáticos à altura dos desafios impostos.