
Ensaio sobre o fracasso da memória alemã diante do genocídio em Gaza
Sobre o apoio alemão ao sionismo durante a guerra na Palestina
Como chileno nascido na Alemanha, filho de exilado e familiar de detido desaparecido, sempre admirei este trabalho da memória alemã e o consenso social sobre o que foram os crimes nazistas. Sempre pensei que o Chile tinha muito a aprender com a Alemanha sobre como trabalhar a memória das próprias vítimas, as da ditadura.
Ao contrário da Alemanha, no Chile esse consenso social acerca dos crimes da ditadura brilha pela ausência, com isso a memória acaba reduzida a uma questão de esquerda versus direita, como se os milhares de assassinados e desaparecidos não fossem filhos e filhas, mães e pais, avós, mas simplesmente “zurdos”, cuja aniquilação ficava justificada devido à sua adesão política. Apesar da existência de diversos centros de tortura e detenção como Villa Grimaldi, Londres 38, Três e Quatro Álamos, a narrativa que parece ter prevalecido na sociedade chilena 30 anos depois foi: “Para que se metem em política?” De outra forma, não me explico por que a memória histórica da ditadura acaba sendo uma memória de poucos, daqueles que ainda choramos nossos mortos.
Apesar de minhas críticas sobre como tem funcionado o trabalho de memória no Chile ainda serem válidas, minhas percepções sobre a memória alemã se transformaram durante este um ano e meio. Este curto ensaio tenta descrever como a memória alemã tem sido usurpada e instrumentalizada para os fins políticos mais baixos.
Memória Instrumentalizada
Todos que passaram por Berlim conhecem os chamados Stolpersteine, essas placas comemorativas que têm gravado o nome de pessoas judias que tiveram que sair à força de suas casas ou foram arrancadas pelo regime nacional-socialista. Esse dispositivo visual muito simples, mas poderoso, nos fala da bem-sucedida política de memória histórica que se instalou na Alemanha como parte da política de Estado.
Ao contrário do Chile, sempre pensei que a Alemanha havia consolidado uma memória histórica com um trabalho de profunda conscientização do que significava o fascismo. Também achava que seus chamados ao “Nunca mais” se traduziram em tentativas de estabelecer políticas públicas sérias e profundas de conscientização e reflexão. Ingenuamente, pensei que esse país havia aprendido suas lições da própria história — após ter cometido vários genocídios, tanto por sua história colonial quanto pelo regime nacional-socialista. Mas essa crença desabou rapidamente com o genocídio em Gaza.
A classe política alemã rapidamente declarou que, diante dos ataques do Hamas em 7 de outubro, a segurança de Israel era “razão de Estado”, como Angela Merkel havia afirmado alguns anos antes. A Alemanha tem dado apoio logístico, militar e diplomático a Israel desde que este iniciou sua “operação militar” em Gaza. A classe política comprometeu-se a ajudar Israel com envio de armamento e apoio diplomático, enquanto internamente o Estado e a imprensa apoiam a repressão e difamação dos protestos pró-Palestina, tachados de “antissemita” ou “simpatizantes do terrorismo”. Essa campanha de repressão e difamação tem como base o uso da muito debatida e criticada definição de antissemitismo da IHRA, que equipara “anti-sionismo” com “antissemita”.
Esse apoio incondicional a Israel está levando a Alemanha a um caminho de autoritarismo político que beira o fascismo, pois volta-se cada vez mais contra as minorias mais precarizadas (estudantes, estrangeiros, migrantes) que ousam protestar contra o genocídio e contra a cumplicidade alemã.
Caça às Bruxas e o Falso Anti-Antissemitismo
Esse movimento e recurso de repressão anti-antissemita não é novo e tem sido usado há muito tempo para difamar todos os críticos às políticas coloniais, de limpeza étnica e apartheid do Estado de Israel contra a população palestina. Os trabalhos do sociólogo israelense Moshe Zuckermann mostram que o uso da categoria de antissemitismo tem sido uma estratégia recorrente do Estado israelense contra seus críticos, e os recentes casos evidentes de brutalidade genocida e os crescentes protestos no mundo ocidental só intensificaram o uso dessa ferramenta de difamação.
O que a Alemanha ganha com tudo isso? Além de obedecer a uma lógica econômica de comércio entre as duas nações, o compromisso alemão com Israel também tem como objetivo lavar a imagem da Alemanha, que tem um problema profundo com o antissemitismo, fenômeno principalmente associado à ideologia de direita. Contudo, a política e os meios de comunicação, atuando em conjunto, buscam passar a imagem de que o antissemitismo se expressa nos protestos contra o genocídio em Gaza, compostos majoritariamente por estudantes, estrangeiros e alemães com “histórico migratório”. Isso se conecta com a falsa ideia de que o antissemitismo é um fenômeno importado (devido à alta incidência árabe, principalmente em Berlim), e como elemento ideológico da esquerda. De fato, a líder da ultradireita Alice Weidel afirmou em entrevista que Hitler “era comunista” e que os antissemitas são todos de esquerda, ou seja, pró-Palestina.
Apesar do absurdo dessa ideia — uma líder da extrema direita afirmar tal absurdo faz sentido no contexto. Isso porque a extrema direita “global” não só apoia o sionismo — e por isso o genocídio em Gaza — mas, em seu profundo antissemitismo, muitos sonham em se livrar um dia dos judeus que vivem integrados nas sociedades ocidentais. Para que todos os judeus emigrassem, eles precisam projetar uma sensação de “insegurança” para a vida judaica, e que somente Israel pode garantir essa segurança. Assim, o sionismo conecta-se com o verdadeiro antissemitismo porque contradiz a ideia de que os judeus possam viver em paz e com segurança em qualquer lugar do mundo. Outros antissemitas disfarçados são os cristãos evangélicos de extrema direita, que apoiam o sionismo por razões mesiânicas e escatológicas, pois acreditam que, quando todos os judeus retornarem “à sua terra” (ou seja, a Palestina convertida no “Grande Israel”), esperam a segunda vinda de Cristo e os primeiros a serem condenados serão os infiéis, entre eles os judeus.
Dessa forma, entende-se que essa estratégia de distorção semiótica tem como base renomear o antissemitismo como anti-sionismo, assim os críticos a Israel se tornam inimigos de todos os judeus do mundo. Essa falsa conflagração vem acompanhada de uma onda de repressão no Ocidente, cujo giro autoritário foi iniciado pelos liberais sob o mandato de Joe “genocida” Biden, e agora aprofundado pela extrema direita em seu esforço constante de distorcer narrativas e impor uma visão alternativa do mundo que justifique qualquer barbárie.
Consequências Concretas
Na prática, o uso dessa acusação de antissemitismo no Ocidente tem feito com que pessoas que se pronunciaram publicamente contra isso percam seus empregos ou sejam expostas e difamadas publicamente. Vale lembrar que a acusação de antissemitismo é grave na Alemanha e pode prejudicar muito a vida de alguém.
Mesmo assim, em países como EUA e Alemanha, são principalmente judeus que lideram os protestos pró-Palestina. Diversos grupos, tanto de estudantes quanto sobreviventes do Holocausto, condenaram as ações de Israel, clamando “Não em nosso nome!”. Mas esses judeus anti-sionistas são igualmente reprimidos pela polícia alemã, pois representam os judeus “incomodados” e “de esquerda” que não cabem na propaganda sionista que emana do Estado alemão e dos grupos de lobby que buscam implementar políticas mais repressivas contra os críticos do Estado de Israel. A propaganda de Israel tenta equiparar todos os judeus à nação de Israel e o sionismo ao judaísmo. Da mesma forma funciona a conflagração entre “anti-sionismo” e “antissemismo”; os alemães agora falam em “antissemitismo anti-israelense”.
Mas o que é realmente o antissemitismo hoje? Ao contrário do que sustenta a propaganda sionista, o antissemitismo deve ser diferenciado do anti-sionismo. Segundo a definição da Declaração de Jerusalém, que faz clara distinção entre ambas as posições (ao contrário da definição da IHRA), antissemitismo refere-se à “discriminação, preconceito, hostilidade ou violência contra judeus por serem judeus (ou contra instituições judaicas por serem judaicas)”. Já o anti-sionismo se opõe ao sionismo como ideologia política que pode ser resumida na frase “uma terra sem povo para um povo sem terra”, que expressa bem o caráter colonial de assentamento da ideologia sionista, manifestado de forma brutal em figuras que lideram o movimento dos colonos israelenses mais fanáticos, Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir. Ambos políticos são parte da coalizão de extrema direita do governo atual liderado pelo criminoso de guerra Benjamin Netanyahu.
Com essa diferenciação clara entre anti-sionismo e antissemitismo, qualquer crítica às políticas do Estado de Israel deveria ser legítima, assim como qualquer crítica política a um Estado e suas práticas. Desde quando é proibido criticar as políticas de um Estado específico? No caso alemão — como em muitos países ocidentais — Israel sempre é tratado como uma exceção. Uma exceção que não é nova, considerando as múltiplas resoluções da ONU que condenam as políticas coloniais de assentamento nos territórios palestinos por parte de Israel, as quais foram completamente ignoradas. Não creio que exista país no mundo que goze de tanta excepcionalidade, e que nunca teve que prestar contas pelos inúmeros atos de crueldade (talvez apenas comparável ao seu grande aliado imperial EUA). Ainda mais quando seus próprios soldados expõem seus crimes de guerra na internet sem temer qualquer retaliação.
Uma Aliança Perigosa
Apesar de tantas evidências de crimes de guerra e clamores genocidas, a elite política alemã continua cega em seu compromisso com o Estado israelense, ignorando todo contexto histórico e negando o caráter humano dos palestinos. Como nação com passado colonizador, parece que na Alemanha espera-se que os palestinos desistam de toda resistência à expropriação de suas terras e se tornem o que o autor palestino Mohammed El-Kurd chamou de “vítimas perfeitas”. Só assim, como vítimas, suas vidas recebem algum grau de reconhecimento, algum grau de humanidade.
Repetidamente, denunciou-se a dupla moral com que a Europa condena os ataques russos à Ucrânia, enquanto cala sobre Gaza. Dessa forma, sua mensagem ao mundo é que os palestinos, como grupo humano, não cabem na esfera humana. Mesmo que não digam isso abertamente, sua narrativa repete, ponto a ponto, a propaganda do Exército Israelense (IDF), já conhecido por sua vasta campanha de desinformação e desumanização da vida palestina.
Mas o mais chocante é que esse apoio incondicional ao genoc
ídio israelense é acompanhado da crescente influência da extrema direita no próprio governo alemão, que também apoia o Estado israelense, embora à sua maneira.
A aliança da extrema direita alemã com o Estado de Israel pode parecer paradoxal, mas é profundamente estratégica e baseada em interesses econômicos, ideológicos e geopolíticos. Israel representa um Estado autoritário, racista e colonial, que exerce sua violência contra um povo sem Estado e com poucos aliados internacionais. A extrema direita alemã se inspira em Israel e sua brutal repressão, vendo-o como um modelo para políticas autoritárias internas. Por outro lado, Israel se beneficia da legitimidade oferecida pela cooperação com a Alemanha, que, graças ao seu passado nazista, possui um peso simbólico e econômico importante no cenário internacional.
Considerações Finais
A memória alemã, ao contrário do que imaginei, está longe de ser uma simples lição do passado. Está sendo manipulada para legitimar políticas autoritárias, repressivas e colonialistas que negam direitos e vida a outros povos. E pior, se torna uma arma para calar vozes dissidentes e justificar alianças perigosas com forças políticas que alimentam o ódio e a exclusão.
Se queremos construir uma verdadeira memória histórica, devemos resistir a esse uso político da memória. Devemos apoiar a solidariedade internacional com os povos oprimidos, denunciar os crimes de guerra, e defender a liberdade de expressão e o direito à crítica política, especialmente quando se trata de denunciar genocídios e opressões.
Como chileno que cresceu ouvindo histórias de exílio, desaparecimento e luta, acredito que essa luta também é nossa, para que nunca mais o passado seja usado para justificar o presente e o futuro de violência e exclusão.