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50 anos sem Franco: um olhar memorialista feminista
História

50 anos sem Franco: um olhar memorialista feminista

Sobre a repressão da ditadura nacionalista no Estado Espanhol e seu impacto especialmente nas mulheres

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Via Viento Sur

Tempo de leitura: 10 minutos.

A ditadura desenvolveu múltiplas formas de repressão contra as mulheres que adquiriram um compromisso político e sindical, contra aquelas que ameaçaram o novo modelo de feminilidade, de mãe e esposa, imposto com seu nacional-catolicismo. Uma nova moralidade e uma ordem social que suprimia os avanços alcançados durante a II República, que requeria repressão e controle do corpo e da sexualidade das mulheres, e que se estendeu a qualquer mulher que ousasse transgredir os mandatos patriarcais.

Era uma repressão capilar que permeava todos os espaços, privados e públicos. O regime criou uma estrutura política, legal e institucional para doutrinar, punir e isolar socialmente todas aquelas que defendiam suas ideias e que não cumpriam os cânones de “pureza”. Prisões, reformatórios, hospitais psiquiátricos, maternidades, centros da Igreja e da Seção Feminina da Falange. Uma rede interconectada que esmagava as mulheres, como mostra a jornalista Andrea Momoitio em seu livro Lunática (Libros del KO, 2022).

E se na luta política contra o regime era possível contar, apesar dos riscos e sacrifícios, com laços de solidariedade, no resto das vidas dissidentes a solidão e a marginalização tornavam a existência ainda mais dura e cruel.

Neste artigo destacamos alguns aspectos dessa repressão e lugares de memória, particularmente em Madri.

As prisões
Ao longo da ditadura, milhares de mulheres foram detidas, condenadas e encarceradas por sua atividade antifranquista, por delitos chamados de “ordem pública” (associação ilícita, manifestação, propaganda ilegal). Com o tempo e duras lutas dentro das prisões, conquistaram o status de “presas políticas” que a ditadura lhes negava. Junto a elas, mulheres condenadas por terem abortado, trabalhadoras sexuais (para as quais, nos anos 40, foram abertas 8 prisões específicas administradas por ordens religiosas), mulheres que por pobreza praticaram contrabando, roubo e outros crimes. Também nesses anos foram criadas várias prisões maternais até que se inaugurou a Prisão Central de Mães Lactantes na própria prisão de Ventas.

Das condições de vida nas prisões, bem como das estratégias de resistência e organização durante a primeira etapa da ditadura, deixaram testemunhos mulheres como Juana Doña, Tomasa Cuevas e Manolita del Arco. Também estudos e pesquisas recentes falam, entre outras, das prisões de Ventas, Quiñones, Alcalá de Henares (Madri), Saturrarán (Guipúzcoa), Les Corts (Barcelona), Málaga, Segóvia, Almería, Valência e Zaragoza.

O itinerário carcerário e as condições dentro das prisões femininas variaram ao longo dos anos. Fechavam algumas e abriam outras. Em Madri, Ventas fechou em 1969, manteve-se Alcalá de Henares (por um tempo prisão masculina) e foi habilitada Yeserías em 1974. Em Barcelona, Les Corts fechou em 1955 e Trinitat Vella funcionou de 1963 a 1985. De todas elas existem testemunhos recentes, como o recolhido no documentário de Julia Montilla.

Da repressão às mulheres no tardofranquismo consta que, somente em 1975, foram iniciados processos contra 164 mulheres pelo Tribunal de Ordem Pública, um tribunal de exceção que foi substituído em 1977 pela atual Audiência Nacional.

Os interrogatórios policiais, realizados principalmente na Direção Geral de Segurança (DGS), eram acompanhados de vexames, maus-tratos e, muitas vezes, de brutais torturas. Mulheres como Rosa García, Felisa Echegoyen, Ángela Gutiérrez e Roser Rius entraram com queixas contra os tribunais espanhóis (também contra a justiça argentina) para exigir responsabilidades pelas torturas sofridas. Mas até hoje essas queixas foram negadas, amparadas na Lei de Anistia de 1977, mantendo-se a impunidade da ditadura e seus torturadores.

Uma Anistia que, no entanto, não contemplou as chamadas “presas comuns”, nem as dissidências sexuais encarceradas em aplicação da Lei de Periculosidade e Reabilitação Social. É preciso destacar que a invisibilidade e o controle sobre lésbicas e trans as condenou ao “silêncio, negação e banalização”.

Quando em 1977 o movimento feminista exigiu anistia, fez isso ampliando o conceito do político e também reivindicando a liberdade das presas encarceradas por chamados delitos “específicos” (adultério, aborto, prostituição). Tudo isso como luta fundamental para defender que o pessoal também é político e que esses “delitos” faziam parte do universo repressivo do franquismo.

O ontem e o hoje da repressão têm um reflexo dramático em um edifício de Madri. Após o fechamento de Ventas e até a abertura de Yeserías como prisão feminina, a direção de prisões transferiu as mulheres grávidas para os porões do Hospital Penitenciário da prisão de Carabanchel. Hoje é o Centro de Internamento de Estrangeiros (CIE) de Aluche, uma prisão para pessoas migrantes racializadas, que deve ser fechada e transformada em um Centro de Memória da repressão franquista e do racismo institucional, como se reivindica.

Os Centros do Patronato de Proteção à Mulher
Esta instituição, que sobreviveu até 1985, dependente do Ministério da Justiça, calculava-se que chegou a ter 900 centros no Estado espanhol. Neles se encerravam meninas até os 25 anos (quando atingiam a maioridade, que até 1973 era aos 18 anos e depois aos 21) e sua tutela passava a ser exclusiva do Patronato.

Diversas ordens religiosas, como Adoratrices, Oblatas, Cruzadas Evangélicas, entre outras, dirigiam esses Centros com os princípios de “zelar pelas jovens caídas ou em risco de cair”, “impedir sua exploração, afastá-las do vício e educá-las segundo os ensinamentos da religião católica”.

Como destaca Consuelo García del Cid em Las desterradas hijas de Eva, encerravam “todas as menores que lhes foram entregues, detidas ou simplesmente capturadas por aquela sórdida polícia feminina disfarçada de funcionárias franquistas, que vigiavam comportamentos nas ruas e demais lugares públicos, incluindo trens de longa e curta distância, bailes, cinemas e piscinas”. Qualquer pessoa podia denunciar uma jovem se considerasse seu comportamento moralmente duvidoso.

Cada “junta provincial” tinha um Centro de Observação e Classificação (COC), onde se examinava as mulheres para certificar se eram “virgens” e se tinham boa moralidade. Se exerciam a prostituição, eram separadas das demais; se estavam grávidas, levadas para maternidades como Peña Grande, de onde aconteciam os roubos de bebês. Se consideradas especialmente difíceis, enviadas para o hospital psiquiátrico de Ciempozuelos (Madri), entre outros, e, conforme a classificação, para algum dos reformatórios.

Nos últimos anos, graças ao trabalho de pesquisadoras e jornalistas, têm surgido testemunhos de mulheres que explicam o que sofreram, as humilhações, o trabalho escravo (podcast De Eso No Se Habla, Isabel Cadenas).

Mas até hoje nem o Estado nem as ordens religiosas que dirigiram esses centros assumiram qualquer responsabilidade, pelo contrário, receberam condecorações ao mérito, bem como subsídios, e continuam dirigindo centros para menores.

O roubo de bebês
Como destaca Sol Luque, o roubo de meninas e meninos é fruto dessa violência generalizada contra as mulheres. Começou com a implantação da ditadura franquista, justificando quais mulheres não eram aptas para exercer a maternidade com base em critérios ideológicos, religiosos, sociais, eugenésicos etc.

Esse roubo, que começou nas prisões e correicionais por meio de decretos, perdurou até 1990 sem nenhum respaldo legal, mas com a aquiescência do Estado. Continuou em clínicas e maternidades, centros de internamento e qualquer outro local onde as mulheres dessem à luz. Foi perpetrado por uma rede de agentes que faziam parte de ordens religiosas, estabelecimentos sanitários e do funcionalismo público.

Nesse contexto de domínio sobre as mulheres, a trama do roubo de bebês funcionou com total impunidade. Muitas vezes, as mães sofreram coerção e culpabilização por não serem “aptas para a criação” para entregarem “voluntariamente” seus bebês. Outras vezes, os bebês desapareciam com a justificativa de que haviam morrido, sem que as mães pudessem comprovar.

Atualmente, a maior parte dos 526 processos relativos à busca de bebês roubados está arquivada.

Os “Manicômios”
Outro sistema de repressão contra mulheres cuja conduta não era considerada “exemplar” foi o internamento em hospitais psiquiátricos.

Temos especial registro de vários manicômios femininos em Madri: o mais conhecido, o de Ciempozuelos (atual Complexo Assistencial Benito Menni), que teve um pavilhão inteiro destinado a jovens vindas do Patronato de Proteção à Mulher.

Muito relevante foi o Manicômio Nacional de Santa Isabel em Leganés, do qual existem vários relatos muito interessantes reunidos no livro Cartas desde el Manicomio (várias autoras), que descrevem as tentativas de algumas internas de serem libertadas por seus maridos ou filhos, prometendo se tornar mulheres responsáveis e respeitáveis para eles.

Destaca-se que alguns homens apenas precisavam dar um testemunho sobre o comportamento da esposa para que ela fosse internada. Era a chamada “periculosidade de origem psíquica”, um conceito legal que unia periculosidade e doença mental.

Também em Madri, havia uma ala dedicada a mulheres psiquiatrizadas nos porões do Hospital Provincial, que ficava no atual Museu Reina Sofia, e foi transferido em 1968 para a Cidade Sanitária Francisco Franco, atual Hospital Gregorio Marañón.

Como destacou Lucas Platero, a psiquiatria teve papel central no controle e repressão do lesbianismo e da disforia de gênero durante a ditadura (“Lesboerotismo y la masculinidad de las mujeres en la España franquista”, 2009).

Verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição
A morte do ditador não foi um ponto final para a repressão que o franquismo exerceu sobre as mulheres, e os testemunhos sobre os Centros do Patronato, as prisões e o roubo de bebês comprovam isso. Por isso, vários coletivos há muitos anos reivindicam verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição para as vítimas.

Mas não se pode estabelecer a verdade enquanto o Estado não assumir sua responsabilidade integralmente, enquanto não se possa acessar os arquivos da Igreja, das ordens religiosas, dos Centros do Patronato, das maternidades, dos hospitais psiquiátricos.

O Governo planeja colocar placas em diversos edifícios, como a DGS e a prisão de Yeserías, mas isso não é suficiente. São necessários Centros de Memória da repressão, como se reivindica no caso de Madri, para Carabanchel e Alcalá de Henares (La Galera), entre outros.

Como falar em justiça e reparação se não são aceitas as queixas das mulheres contra os torturadores, se não é aprovada a lei dos bebês roubados e nada se diz sobre o citado Patronato na Lei de Memória Democrática? Como não denunciar a impunidade do franquismo?

Como destacou Clara Gutiérrez: “É essa genealogia que nos permite não ter que começar do zero diante das ameaças que se aproximam. Essa memória feminista antifranquista é uma fonte de valores inabaláveis e uma escola de luta e resistência.”

As autoras deste artigo são Lucía Vicente, Justa Montero, Ana García, Sacri García-Rayo, Paz Romero, Nerea Fulgado, Clara Gutiérrez, Laura Encabo e Begoña San Vicente, integrantes do grupo de mulheres da La Comuna, associação de presas e perseguidas do franquismo.











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