Via Tricontinental
Introdução
É impossível desconectar a religião dos projetos políticos de dominação e de libertação na América Latina. Desde a época da colonização, alguns movimentos têm usado a religião para oprimir, abusar e escravizar pessoas, enquanto outros têm usado a religião para organizá-las e libertá-las. Hoje, o avanço da religião e da retórica religiosa na política institucional na América Latina tornou-se uma tendência significativa. Um número cada vez maior de crentes, sejam eles progressistas ou reacionários, tem trabalhado para difundir suas crenças, demandas e projetos na vida religiosa diária e na esfera pública.
A esmagadora maioria dos latino-americanos é cristã, incluindo mais de 80% da população em toda a região (católica e evangélica juntas) e mais de 90% da população em países como Bolívia, Equador, Paraguai e Peru. Todos os países da região têm uma população que é pelo menos 50% cristã (com exceção do Uruguai, onde o número é de 44%), e em muitos países há uma mudança do catolicismo para formas de protestantismo. Guatemala, Nicarágua e Honduras reduziram atualmente a diferença entre o número de católicos e evangélicos; enquanto isso, El Salvador, Brasil, Costa Rica, Panamá, República Dominicana e Bolívia têm populações que são pelo menos 20% evangélicas. Esta porcentagem é ainda maior nas áreas da classe trabalhadora.[2]
Os hábitos e práticas de fé são cruciais para a vida cotidiana da classe trabalhadora da América Latina. Igrejas, templos, terreiros[3] e casas de oração são parte da cultura do povo; aqui, eles encontram recepção, um senso de comunidade e a possibilidade de viver coletivamente sua espiritualidade. Em um continente marcado pelo legado do colonialismo, formas sociais de todos os tipos – incluindo a religião – têm proporcionado refúgio e a base para a resistência. A religião não é intrínseca apenas à vida cotidiana das pessoas, mas também às suas lutas e revoluções.
Entretanto, desde que o neoliberalismo começou a avançar na América Latina, a direita cresceu tanto na esfera política quanto na social. Este processo se reflete não apenas na retirada dos direitos da classe trabalhadora, mas também em discursos que buscam enfraquecer as instituições democráticas. O fundamentalismo religioso é um instrumento utilizado para manter este projeto neoliberal, fixando-se na ideia de que existe apenas uma verdade única, imutável e inquestionável. Em outras palavras, é anti-dialógico e anti-pluralista e idealiza fortemente um passado que nunca existiu. Esta ideologia absoluta e dogmática vai muito além da religião: ela também molda a vida política, econômica e social.
Este dossiê sintetiza a pesquisa do grupo de trabalho Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social (Brasil) sobre evangelismo, política e organização de base. Examinando a história do cristianismo e do crescimento do fundamentalismo religioso na América Latina, tendo o Brasil como estudo de caso primário, o texto traça o desenvolvimento do fundamentalismo religioso desde suas origens até sua forma contemporânea e sua inserção na política regional, onde procura promover agendas misóginas, anticomunistas e antidemocráticas, bem como projetos imperialistas no continente. Por outro lado, também recuperamos as vozes e resistências, do passado e do presente, que enfrentaram o fundamentalismo religioso na América Latina. Inspirado pelas práticas revolucionárias dos muitos mártires da América Latina e influenciado pelos ensinamentos do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda e do educador brasileiro Paulo Freire, este dossiê é baseado em entrevistas com educadores da classe trabalhadora e com membros da base evangélica dos movimentos populares.
O fundamentalismo religioso e suas origens
No final do século XIX e início do século XX, a teologia cristã como campo de estudo foi marcada por vários avanços no pensamento e métodos de investigação que foram fortemente influenciados pelo Iluminismo europeu dos séculos XVII e XVIII. Estas perspectivas tiveram implicações práticas; por exemplo, o chamado Evangelho Social procurou dar uma resposta teológica à realidade enfrentada pela classe trabalhadora urbana nas grandes cidades dos Estados Unidos após a crise e as transformações econômicas da Guerra da Secessão (1861-1865).[4]
Com o avanço da ciência moderna e o desenvolvimento de formas científicas de leitura (como a hermenêutica para o estudo bíblico), tornou-se necessário fundamentar o estudo da Bíblia em seu contexto histórico e interpretar a linguagem mística que ela emprega às vezes. O método histórico-crítico questionou a interpretação literal da Bíblia e deu novo significado à figura de Jesus e às histórias bíblicas, enfatizando seu valor ético e moral, em vez de se concentrar em uma análise metafísica. O movimento que adotou esta abordagem passou a ser conhecido como teologia liberal.
Foi neste contexto histórico, reagindo aos novos significados que estavam sendo oferecidos pela teologia liberal, que o fundamentalismo religioso surgiu na forma de grupos protestantes conservadores que se opunham a esta nova forma científica de ver o mundo. Começando com a publicação de doze volumes intitulados The Fundamentals: A Testimony to the Truth between 1910 and 1915, este movimento argumentou que certos elementos da fé cristã não eram negociáveis. Esta publicação foi financiada pelo bilionário presbiteriano Lyman Stewart, organizado pelo Reverendo Reuben Archer Torreye, e distribuído em todos os EUA e outros países de língua inglesa. Cerca de três milhões de cópias foram colocadas nas mãos de crentes, teólogos e missionários, sem custo.[5]
O fundamentalismo religioso nasceu assim como uma reação antagônica à ciência, ao humanismo e aos valores da modernidade que emergiu do Iluminismo, que ele via como um inimigo a ser combatido. A visão deste projeto estava intimamente ligada à ideia de “Destino Manifesto”, que se desenvolveu nos Estados Unidos em meados do século XIX e sustentava que a conquista do Ocidente americano pelos colonizadores americanos era o desejo de Deus. Esta ideia foi retomada e adaptada pela direita cristã na segunda metade do século XX, que a utilizou para justificar a ação imperialista dos EUA em todo o mundo, inclusive na América Latina.
O projeto imperialista norte-americano está intimamente ligado a esta visão religiosa fundamentalista, que afirma que os crentes foram enviados por Deus para “civilizar” os “bárbaros”. O protestantismo americano tem sido usado como uma justificação religiosa para as ações imperialistas do país. Não é possível, em nenhuma análise, separar o imperialismo do fundamentalismo religioso, cujos seguidores vêem sua luta como uma guerra do bem contra o mal que atravessa não apenas a religião, mas também a política, o poder militar, a educação e o meio ambiente. Como resultado, o movimento se insere no mundo e na vida cotidiana dos trabalhadores, posicionando-se ativamente contra seus oponentes em vários contextos muito além do âmbito religioso. A máxima protestante “converter o indivíduo e a sociedade mudará” lança luz sobre esta abordagem e a percepção da importância de conquistar novos crentes: não é mais apenas o pecado individual que deve ser purgado, mas os pecados de todas as nações.
Além disso, os fundamentalistas vêem a conquista da riqueza como um dever protestante, e sua interpretação da Bíblia afirma que a fé e a disciplina levarão à prosperidade dos crentes, acima de tudo financeiramente. Portanto, a pobreza é entendida como um reflexo da falta de fé e da falta de disciplina. A teologia da prosperidade, fortemente associada ao neopentecostalismo, tem estado intimamente ligada ao protestantismo conservador desde o início do século XX.
Entretanto, para os trabalhadores negros, imigrantes e empobrecidos nos EUA que frequentavam as igrejas protestantes no início do século XX, esta visão não teria feito sentido. Esta “inadequação” de um Protestantismo da riqueza está na raiz do Pentecostalismo, cuja origem está no Movimento de Rua Azusa, em 1906, em Los Angeles. Segundo o testemunho do pregador negro William J. Seymour, os pobres, negros e seguidores imigrantes tiveram experiências catárticas e espirituais que incorporaram sua “africanidade”, ou identidade africana, expressa através de seus corpos e suas canções. Esta africanidade litúrgica carregou consigo o legado de rituais praticados por africanos escravizados: gritos de círculo, danças, palmas, falar em línguas (glossolalia), e emoção que transborda em celebração e adoração.
O pentecostalismo, à sua maneira, dignificou as pessoas marginalizadas que viviam tensões socioeconômicas e raciais durante esse período nos EUA e promoveu a igualdade de gênero em sua liderança. Através da prática da fé, foi criada uma identidade coletiva que serviu como um meio de lidar com certas formas de sofrimento individual: alcoolismo, angústias psicossociais e violência e conflito no lar. O pentecostalismo nasceu, portanto, como uma forma de resistência do povo negro nos Estados Unidos e um desejo de viver sua espiritualidade em diálogo com seus antepassados, algo que não foi encontrado no discurso e na liturgia do protestantismo branco.
Os protestantes pentecostais encontraram dificuldades para praticar sua fé nas formas institucionais convencionais, enfrentando a resistência do protestantismo fundamentalista tradicional americano. Entretanto, nos anos 1960, os fundamentalistas se tornaram mais parecidos com os pentecostais, a fim de recuperar a influência que haviam perdido entre os crentes da classe trabalhadora. Este fenômeno não pode ser compreendido sem o reconhecimento do papel desempenhado pelo pastor batista Billy Graham no final dos anos 1940. Graham, um conhecido pastor e pregador, tinha a convicção de que “o destino da América” dependia da capacidade de converter indivíduos a uma forma de cristianismo que se seguia a uma leitura fundamentalista da Bíblia. Em um esforço de reforma do fundamentalismo do início do século XX, ele criou a Associação Evangelística Billy Graham, que teve um impulso fortemente expansionista, amplo apoio financeiro para campanhas na América Latina, e uma aliança com ditaduras no continente. Isto foi acompanhado por uma abordagem popular e voltada para o anti-comunismo, atacando os comunistas com base em preocupações morais, defendendo a família patriarcal, e argumentando que os cristãos deveriam se mobilizar para promover este objetivo. Graham tornou-se conselheiro pessoal de presidentes americanos como Richard Nixon, Bill Clinton e George W. Bush e foi até oferecido como embaixador em Israel pelo ex-presidente Nixon.
Embora o fundamentalismo religioso não tenha nascido nas igrejas pentecostais, é importante mencionar que, por mais que o movimento pentecostal tenha rompido com algumas formas de opressão, a centralidade de pontos considerados tradicionais na fé cristã foi mantida e explorada ao longo do tempo nesta ligação estratégica entre fundamentalismo e pentecostalismo. Assim, o fundamentalismo, aliado a um projeto imperialista, foi capaz de assumir uma nova forma religiosa. A direita cristã tradicional viu no pentecostalismo uma oportunidade estratégica, que ela utilizou para trazer elementos teológicos e expansionistas para várias partes do Sul Global.
Podemos portanto concluir que uma das características do fundamentalismo é seu caráter reacionário. Entretanto, para avançarmos em nossa compreensão das novas narrativas fundamentalistas que surgiram desde a expansão do pentecostalismo, devemos entender melhor os elementos religiosos que começaram a tomar forma na América Latina durante este período.
Cristianismo e Política na América Latina
Uma história de autoritarismo, colonialismo, escravidão e imperialismo, assim como a animosidade com o surgimento de correntes revolucionárias impulsionadas pela Revolução Cubana de 1959, abriram o caminho para que as ditaduras latino-americanas se espalhassem com força a partir dos anos 1960. Enquanto isso, um movimento cristão se mobilizou contra estas formas de opressão no continente, combinando ferramentas analíticas marxistas com a fé religiosa para moldar um Deus de libertação. Emergindo nos anos 1960, a Teologia da Libertação construiu uma ideologia e uma prática para orientar a luta dos pobres e oprimidos contra a injustiça enraizada em uma leitura da Bíblia que enfatizava um Jesus histórico e emancipatório.
A Teologia da Libertação surgiu como uma resposta de várias organizações populares em um período em que a industrialização avançava em toda a região, massas camponesas eram proletarizadas, e desigualdades sociais estruturais se aprofundavam. Não podemos compreender o avanço do trabalho de base na América Latina sem compreender o cristianismo popular e revolucionário que se enraizou ali. A nova proposta da Teologia da Libertação para a fé cristã centrou nos pobres e marginalizados e foi pioneira em suas leituras da Bíblia. Seu método é composto de três componentes-chave. Primeiro, a realidade: viver entre as pessoas, aprender o que sabem e ser um com elas; segundo, a Bíblia: que traz em diálogo com a vida cotidiana, na realidade e na busca de respostas; e terceiro, a comunidade: compartilhar o pão e a vida através da transformação comunitária da realidade.
Como Gustavo Gutiérrez, um fundador da Teologia da Libertação, delineou, sua nova proposta tornou-se essencial “para compreender os mecanismos de opressão da ordem social dominante”, a fim de realizar uma “ruptura radical com o estado atual das coisas, uma profunda transformação do sistema de propriedade privada [e] do acesso da classe explorada ao poder, e uma revolução social que quebre essa dependência e permita a mudança para uma nova sociedade, uma sociedade socialista”.[6]
Através da Teologia da Libertação, a fé e a luta andaram de mãos dadas na América Latina. Entre os muitos exemplos de laços estreitos entre resistência e cristianismo no continente estão:
Nicarágua, onde os cristãos, influenciados por ações libertadoras em todo o continente, foram essenciais na Revolução Sandinista e na luta pela libertação nacional.
El Salvador, onde os movimentos cristãos no continente inspiraram um maior compromisso com os pobres. Em particular, é importante mencionar os ensinamentos do Padre Rutilio Grande (1928-1977) e sua metodologia de leitura crítica e popular da Bíblia e o exemplo do Bloco Revolucionário Popular, liderado pelo jovem cristão Juan Chacón (1952-1980).[7]
Colômbia, onde o padre católico, sociólogo e guerrilheiro Camilo Torres Restrepo (1929-1966) apelou para um “amor efetivo” pelo próximo e desafiou e condenou a Igreja, alegando que ela havia sido corrompida pelos poderosos.
O Brasil, onde o trabalho pastoral das igrejas católica e luterana era essencial para a formação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).[8]
Houve também várias figuras protestantes importantes na teologia da libertação. Por exemplo, Richard Shaull (1919-2002), conhecido como o “teólogo da revolução”, foi um teólogo presbiteriano americano que viveu no Brasil por muitas décadas, dedicou seus estudos ao diálogo entre o cristianismo e o marxismo, e reuniu as questões sociais e a fé evangélica. Rubem Alves (1933-2014), estudante de Shaull, cunhou o termo ‘Teologia da Libertação’ em sua tese de doutorado.[9] Além disso, figuras como a teóloga e biblista mexicana Elsa Támez (1951- ), a argentina Marcella Althaus-Reid (1952-2009) e a ativista brasileira da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Nancy Cardoso (1959- ) aprofundaram nossa compreensão do corpo e da sexualidade através de uma teologia feminista que criticava a teologia da libertação.
Entretanto, a forma de estar no mundo defendida pela Teologia da Libertação – participando ativa e concretamente das lutas pela justiça – era inaceitável para as forças do imperialismo e seus aliados. Na Teologia da Libertação, eles viram uma ameaça aos seus interesses e à ordem estabelecida, e assim, eles se propuseram a destruí-la.
A batalha da subjetividade
Em toda a América Latina, o movimento conservador cristão uniu forças com a ofensiva imperialista contra a teologia da libertação. Como escreve Vijay Prashad, diretor do Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social, “seitas protestantes, particularmente aquelas de raízes americanas […] pregavam o Evangelho da empresa individual, não da justiça social”.[10] O slogan “haz patria, mata un cura – “ser um patriota, matar um padre” – foi tomado à sua palavra em El Salvador, por exemplo, enquanto na Bolívia, os serviços de inteligência do país, juntamente com a CIA, reuniram dossiês sobre teólogos da libertação nos anos 70.
A estratégia imperialista norte-americana tomou muitas formas, desde apoiar golpes e ditaduras até intervir em eleições e procurar fomentar a oposição às organizações populares. O governo dos EUA buscou estreitar as relações com a Igreja Católica nos anos 1980, quando seu chefe, o Papa João Paulo II, interveio na Revolução Nicaraguense e criticou os padres progressistas. Em seus documentos internos, a CIA enfatizou a necessidade de levar esta batalha para o campo da subjetividade; ou seja, eles procuraram moldar a maneira pela qual as pessoas construíam o sentido de suas vidas no contexto miserável do capitalismo dependente.
Neste contexto, a aliança entre pentecostalismo e fundamentalismo religioso deu origem ao que ficou conhecido como neopentecostalismo, uma fé que cresceu de forma constante nos anos 1980 e 1990, antes de se expandir rapidamente a partir dos anos 2000. O boom do neopentecostalismo fortaleceu o avanço do imperialismo e do neoliberalismo através das diversas tendências da fé, a saber, a teologia da dominação e o evangelho da prosperidade.
A teologia da dominação, ou reconstrucionismo, surgiu nos EUA nos anos 1970 e buscava a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmologia cristã que ajudasse os evangélicos a ganhar e manter o poder na esfera pública. Esta corrente está intimamente associada à ideia de “guerra espiritual”, uma luta contra um inimigo que pode atuar em várias áreas da vida. Esta idéia estava ligada a uma leitura do Antigo Testamento que defendia que os cristãos não deveriam mais evitar o mundo – uma teologia dada em formas anteriores de pentecostalismo – e todo o mal dentro dele, como o pecado e a tentação; ao contrário, eles deveriam existir no mundo em um sentido ativo, em uma guerra contra o mal, inclusive ocupando assentos de poder.
Enquanto isso, o chamado evangelho da prosperidade vê a acumulação de bens materiais como um sinal de bênção divina. Embora este pensamento tenha ganho força entre os neopentecostais, ele está enraizado no protestantismo clássico, segundo o qual vislumbres das bênçãos de Deus também podem ser refletidos no aqui e agora, seja através da prosperidade financeira, recompensa pela disciplina e pela ética de trabalho protestante, ou outros meios.
As ideias fundamentalistas da igreja têm ressoado com uma classe trabalhadora que tem sido colocada na defensiva por ataques neoliberais à subsistência e à vida social, bem como pela fragmentação da cultura da classe trabalhadora e das organizações revolucionárias. O processo de desindustrialização e a reestruturação do mundo do trabalho, no qual as fábricas haviam proporcionado aos trabalhadores um espaço para se organizarem coletivamente para melhorar sua qualidade de vida, fez com que muitos trabalhadores perdessem não apenas seus empregos, mas também seu espaço para a sociabilidade e a luta coletiva. A igreja respondeu a esta necessidade de socialização transformando as questões coletivas em questões individuais, promovendo uma nova identidade da classe trabalhadora que centralizou o status de crente, e retirando, do ponto de vista econômico e ideológico, a centralidade do proletariado organizado como sujeito revolucionário.
Com a ajuda das igrejas fundamentalistas, que ligavam a ideia de boa sorte à dedicação e má sorte à falta de fé, o neoliberalismo normalizou a pobreza e a atribuiu ao infortúnio. O descrédito da visão socialista da revolução como meio de superar a exploração e a opressão enfraqueceu a capacidade da classe trabalhadora e dos camponeses de colocar questões econômicas e políticas no centro de sua análise do presente. Em vez disso, ideias individualistas de avanço pessoal e ideias religiosas de moralidade estruturaram o pensamento de muitos setores da classe trabalhadora e camponesa. A direita cristã retomou a religião como um meio de dominação, muitas vezes fazendo uso dos próprios métodos da esquerda para alcançar a classe trabalhadora e para realizar uma organização de base diária altamente eficaz. As igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais responderam às necessidades concretas do povo no dia-a-dia, fornecendo respostas em nível subjetivo e objetivo a uma parte considerável da classe trabalhadora através de cultos catárticos, que ofereciam celebrações, cultura e lazer nas periferias e eram frequentemente o único espaço para a vida coletiva.
O fundamentalismo religioso latino-americano
O rápido crescimento do neopentecostalismo na América Latina tornou-se evidente tanto na presença do movimento na mídia quanto em seu engajamento na política. A partir dos anos 1980, o velho adágio de que “os evangélicos não se envolvem mais na política” deixou de ser verdadeiro. No Brasil, esta entrada na política pode ser resumida na máxima “os irmãos votam pelos irmãos”. As noções evangélicas do mundo e de Deus começaram a mudar, o que influenciou a forma como eles se envolveram na política institucional. Com o passar dos anos, a religião ganhou força como um código ou símbolo linguístico e político.
As eleições presidenciais de 2014 no Brasil demonstraram até que ponto a comunicação política tinha se tornado vestida com trajes religiosos para outras agendas, como a defesa da moral cristã e a concepção patriarcal da família. A religião também foi usada como uma ferramenta no impeachment da Presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados em 2016. Isto foi evidenciado, por exemplo, quando Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, um Pentecostal pertencente à igreja da Assembléia de Deus, e um ator-chave no processo de impeachment, iniciou a sessão dizendo “Esta sessão está aberta sob a proteção de Deus”. Além disso, uma forte mensagem moral e religiosa permeou os discursos dos parlamentares durante a votação do impeachment, que foram transmitidos em todo o país. Embora a seção evangélica do Congresso brasileiro, que representava cerca de 36% de todos os deputados federais no Congresso na época, não tivesse controle total sobre o processo, seu apoio ao impeachment foi fundamental, com 83,85% da seção evangélica votando a favor da destituição de Dilma.[11]
Segundo pesquisa de Huffpost Brasil, houve 18 menções na Câmara dos Deputados aos “crimes de responsabilidade” que Dilma teria cometido, enquanto os 513 deputados federais mencionaram os termos “família e filhos” e “Deus” um total de 270 e 75 vezes, respectivamente.[12]
O domínio da retórica religiosa sobre a política latino-americana ficou evidente mais uma vez no golpe de 2019 contra Evo Morales, quando a autoproclamada presidente interina Jeanine Áñez marchou até o palácio presidencial segurando uma Bíblia evangélica superdimensionada acima de sua cabeça e declarou, ao tomar o poder, que “a Bíblia voltou ao palácio”. A grande entrada de Áñez foi pré-datada por sua proclamação no Twitter apenas alguns anos antes, “Eu sonho com uma Bolívia livre de ritos indígenas satânicos”. A cidade não é para os índios; deixe-os voltar às terras altas”, uma afirmação que guiou a política do governo golpista e seu massacre dos povos indígenas.[13]
Além disso, durante a pandemia, o fundamentalismo religioso no Brasil, Chile, Peru e em outros lugares da região reforçou a oposição às medidas de saúde pública. Por exemplo, os fundamentalistas argumentaram contra o distanciamento social, argumentando que a fé, mais do que tais políticas, protegeria os crentes. Esta abordagem anti-científica, presente no fundamentalismo desde o início, é um elemento importante do movimento.
Embora o protestantismo na América Latina tenha sido caracterizado por um forte preconceito anti-católico, os evangélicos não são de forma alguma os únicos fundamentalistas religiosos da região. Nas últimas décadas, tanto evangélicos como católicos adotaram um discurso político saturado de religião e perseguiram uma agenda extremamente conservadora, utilizando principalmente o campo jurídico para atacar causas progressistas, como os direitos de gênero, e para enfraquecer a democracia. Além disso, seu movimento é apoiado pelo investimento dos EUA em missões evangélicas e projetado em todo o continente.
Causas fundamentalistas
A chamada defesa da moralidade é um componente chave do discurso fundamentalista, manifestando-se igualmente no poder executivo, no legislativo e no judiciário. A “ideologia de gênero” é também um foco importante do discurso fundamentalista religioso, emergindo inicialmente de um contexto católico, mas logo se espalhando amplamente pelas plataformas de mídia tradicional e social e sendo absorvida pelos setores fundamentalistas evangélicos. Este termo é usado para condenar tudo que não seja cisgênero e heterossexual, baseado na crença de que uma família é limitada aos frutos das relações matrimoniais entre um homem e uma mulher. O aborto também é visto como repreensível, decorrente da visão de que somente Deus tem o poder de tirar uma vida e assim negar o direito da mulher de tomar decisões relativas ao seu próprio corpo. Quando sua perspectiva conservadora é questionada, os fundamentalistas rotulam qualquer crítica como “ideologia de gênero”, uma moldura usada para provocar pânico moral.
O discurso pró-patriarcal da família como um projeto político-econômico fez grandes avanços na América Latina. Os fundamentalistas defendem sua noção de uma “família ideal” como uma forma de manter o status quo nas políticas públicas, na qual as mulheres são tratadas como procriadoras e principais cuidadoras responsáveis por crianças, doentes e idosos, e na qual o trabalho de cuidado na esfera privada continua a recair sobre as mulheres. Os fundamentalistas também usam a lei e a educação para manter uma sociedade patriarcal e extremamente desigual.
Grupos religiosos, de mãos dadas com as elites conservadoras latino-americanas, saíram às ruas para decretar a legalização do aborto, assumindo movimentos feministas que haviam adiantado a discussão sobre os direitos das mulheres para tomar decisões sobre seus corpos. A inserção do fundamentalismo religioso nos debates legislativos tem desempenhado um papel decisivo no bloqueio de mudanças legais progressivas sobre questões importantes na luta contra o patriarcado.
No Brasil, foram os calvinistas (protestantes tradicionais) que mais fervorosamente fomentaram um discurso fundamentalista no governo de Jair Bolsonaro. Eles ocuparam importantes ministérios, como o Pastor André Mendonça no Ministério da Justiça, o Pastor Milton Ribeiro no Ministério da Educação e o Pastor Batista e Ministro da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, uma figura popular entre os evangélicos que construiu uma narrativa centrada na opressão e violência de gênero que sofreu, tomou fortes medidas contra a “ideologia de gênero” e as liberdades sexuais, e desempenhou um papel internacional na oposição à legalização do aborto.
Enquanto isso, o pastor presbiteriano e ex-ministro da educação Milton Ribeiro tem defendido o ensino doméstico, um apelo que foi atendido pelo governo. O impulso para a educação em casa é uma causa comum entre os setores conversadores no Brasil e nos EUA que remonta aos anos 1960 e 1970. Como a escola é um espaço essencial no Brasil, como em muitos países, não só do ponto de vista da educação, mas também para proteger muitas crianças da violência e da fome, a agenda da educação em casa não fala das necessidades dos estratos mais pobres da classe trabalhadora. Enquanto isso, para evitar que a escola seja um espaço de apoio a causas progressistas ou qualquer perspectiva que proponha uma perspectiva alternativa sobre a realidade vivida pela classe trabalhadora, o governo Bolsonaro adotou a causa “Escolas Sem Partidos”, que se tornou um projeto de lei usado para intimidar os professores a se limitarem a fornecer uma educação supostamente “neutra”.
Para entender nosso momento atual, devemos entender como o movimento fundamentalista tem funcionado estrategicamente ao lado do povo em nível de base. O apoio popular à agenda conservadora do fundamentalismo tem sido essencial para legitimar este projeto na sociedade; sem a atividade diária nas igrejas, o avanço institucional deste projeto não teria sido possível.
A Ascensão do Movimento Evangélico ao Poder Político no Brasil
Um mês antes do golpe de 2016 contra a então presidente Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro, um católico declarado, deixou o Partido Progressista (PP) e aderiu ao Partido Social Cristão (PSC). No evento confirmando sua filiação, Bolsonaro foi batizado – um ritual simbólico para os evangélicos – pelo presidente do partido, Pastor Everaldo Pereira da Assembléia da Igreja de Deus. O batismo não aconteceu em um lugar qualquer; ocorreu em Israel, nas águas do rio Jordão, onde a Bíblia afirma que Jesus foi batizado. Isto levou muitos a acreditarem que Bolsonaro havia se convertido à fé evangélica, um movimento estratégico para capturar a imaginação dos evangélicos.
O pânico moral, juntamente com notícias falsas, impulsionou a candidatura de Bolsonaro e sua crescente relevância para os cristãos nas eleições presidenciais de 2018. Bolsonaro foi capaz de construir uma persona que ressoava com os evangélicos, apresentando-se como um candidato “autêntico” que defenderia a família patriarcal, que falava livremente e sem filtro, que não se preocupava com status, que tinha gostos e hábitos simples, e que representava algo “novo”, destacando-se em contraste com os anos do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que ocupou o cargo presidencial de 2003 a 2016 e que sua campanha estava associada à “política velha e corrupta”. Esta estratégia acabou sendo bem sucedida, culminando na vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, nas quais ele recebeu 71% dos votos do eleitorado evangélico – um setor que representa 31% da população brasileira – apesar do discurso violento, racista e misógino da campanha.[14] Diversos fatores foram cruciais na eleição de Bolsonaro; junto com seu crescente vínculo com o setor evangélico, que passou a ocupar espaços institucionais de poder, sua campanha foi capaz de propagar discursos e narrativas poderosas relacionadas à família, à moralidade e à chamada ideologia de gênero.
O fundamentalismo religioso entrou na esfera política para afirmar um modelo capitalista de sociedade, que atualmente aparece com um rosto neofascista. O fundamentalismo, em aliança com o neoconservadorismo que avançou na América Latina nos últimos anos, concentra um discurso moral que se baseia na “família tradicional” e em questões reprodutivas. Além disso, ele construiu uma base aparentemente inabalável entre a classe trabalhadora, que se moveu para apoiar um projeto do qual é a principal vítima.
Resistência e Horizontes Futuros
“Deixemos para trás o que nos divide e procuremos o que nos une”.
Camilo Torres Restrepo[15]
A classe trabalhadora vive diariamente sua fé religiosa em rituais individuais, em conversas privadas com Deus, em valores e em espaços coletivos de comunhão. É na vida diária que a classe operária caminha para uma identidade evangélica centrada no conceito de fraternidade religiosa e não em uma identidade compartilhada como trabalhadores. Esta mudança demonstra o poder da religião em nível popular, no qual mesmo a linguagem cotidiana está mudando para refletir o léxico de um povo que já não se organiza exclusivamente através de sindicatos, coletividades sociais de luta e movimentos populares, mas principalmente nas igrejas. Nenhuma revolução é possível sem um tema revolucionário; no caso da América Latina, não é possível avançar para qualquer transformação radical da sociedade sem levar em conta a forte influência do cristianismo na socialização das massas.
Se o evangelismo permeou os lares das famílias da classe trabalhadora, é no lar, através da recuperação das teologias libertadoras de luta, que o fundamentalismo religioso será combatido e uma nova casa construída onde a fé é respeitada e até absorvida como uma linguagem legítima da classe trabalhadora. Devemos estar abertos a uma compreensão mais ampla da religião; como nos ensinou Fidel Castro, “nada pode ser mais anti-marxista do que a petrificação das ideias”.[16] É na Batalha de Ideias e na Batalha das Emoções, em diálogo profundo e respeitoso com os crentes que encontraram na Bíblia um caminho possível para a sobrevivência diante de tanta adversidade, que o fundamentalismo religioso pode ser extinto. É importante notar que a maioria da base dos movimentos populares no Brasil são cristãos religiosos comprometidos com a luta e com a fé. A crença em Deus, na Bíblia, na fé e em todos os aspectos da religião deve ser entendida como uma forma de buscar entender o mundo; somente assim se pode criar a possibilidade de construir uma nova linguagem libertadora que una a classe trabalhadora por trás de um projeto comum e revolucionário.
Os escritos do marxista italiano Antonio Gramsci sobre religião e cristianismo, e em particular o papel da Igreja Católica, nos ajudam a ir além de uma discussão limitada sobre se se deve ou não acreditar em Deus.[17] A tarefa em mãos é compreender a religião e seu poder de mover o coração e a mente do povo para a ação política. Gramsci radicalizou a máxima de Marx de que “a religião é o ópio do povo”: como ela é uma ferramenta para falar contra e resistir aos fatos obstinados da vida, como a fome e o analfabetismo, ela também fornece o poder de criar coletivamente novos valores éticos e morais diante de uma realidade opressiva. A religião tem dois rostos em conflito: ela é igualmente uma força alienante e transformadora.
Gramsci estava ciente de como a religião tem sido usada como uma ferramenta opressiva ao longo da história, servindo muitas vezes para domesticar a classe trabalhadora e explorar suas fraquezas. Entretanto, através da religião e de sua capacidade de mover o coração e a mente das pessoas, é possível construir o que Gramsci chamou de senso comum contra-hegemônico. Negar esta possibilidade e insistir unicamente no anticlericalismo e no ateísmo como táticas revolucionárias é propagar uma atitude elitista que serve como um impedimento para superar o fundamentalismo na América Latina de hoje.
Cuba tem muito a nos ensinar quando se trata de promover um diálogo sobre o papel da fé na construção de uma revolução. Nos primeiros anos após o triunfo revolucionário de Cuba, muitos cubanos religiosos que permaneceram na ilha não se sentiram parte do processo revolucionário por causa da resistência do Estado às igrejas, produto de uma leitura ainda limitada da questão pelo marxismo europeu, e por causa da origem americana das igrejas evangélicas do país. Embora esta resistência tenha persistido durante os anos 1970, ela gradualmente cedeu lugar a uma nova perspectiva de ação conjunta entre a Igreja e o Estado. A Revolução Cubana aprendeu, com o tempo, a acolher e incorporar elementos de fé para fortificar sua luta.
Se o fundamentalismo foi capaz, com a ajuda de financiamento substancial e trabalho de base no terreno, de criar um novo senso comum entre os trabalhadores – mesmo que este senso comum esteja em contradição com sua experiência vivida – ele será baseado na realidade concreta e em muitos fatores que moldam a vida dos trabalhadores que uma forma crítica e revolucionária para a classe trabalhadora praticar sua fé será construída. A fim de consolidar uma filosofia de práxis na América Latina, é uma tarefa necessária e urgente reconfigurar criticamente a fé do povo em uma direção progressiva. Uma perspectiva marxista busca as correntes contra-hegemônicas que existem dentro das forças da religião. Sabemos que os crentes não são simplesmente seguidores passivos; pelo contrário, é através de sua religião que eles produzem e reproduzem visões do mundo, que não estão sem contradições ou reformulações. Como Gramsci assinala, “existe um catolicismo para os camponeses, um para os camponeses-burgueses e trabalhadores da cidade, um para as mulheres, e um para os intelectuais que é, por sua vez, variegado e desconectado “[18]. É importante não generalizar ou homogeneizar os evangélicos na América Latina como se fossem todos fundamentalistas, ou como se todos fossem manipulados. Não basta que a esquerda repita o sentimento anti-religioso de alguns pensadores marxistas ocidentais quando se trata de religião no Sul Global.
Para fortalecer a resistência ao fundamentalismo religioso e seu discurso misógino e odioso, é essencial construir concepções e narrativas alternativas que sejam significativas e que ressoem com a classe trabalhadora e os camponeses. Este discurso contra-hegemônico e esta resistência só podem avançar colocando as linguagens da fé e da luta em relação dialética entre si. O fundamentalismo reagiu aos avanços do campo progressista e incorporou efetivamente alguns de seus componentes em sua estratégia. Da mesma forma, o campo progressista deve olhar por que isto tem sido bem sucedido e extrair lições significativas para fortalecer projetos que promovam os interesses da classe trabalhadora. Isto deve ser feito através de uma lente que tem sido descartada pelo marxismo nas últimas décadas: uma lente que critica o pensamento anti-religioso. Só assim o marxismo será capaz de desfazer os nós que os fundamentalistas religiosos têm amarrado no discurso popular e avançar em espaços ocupados pelo imperialismo e seus aliados. Isto será feito não começando do zero, mas familiarizando-se e dialogando com crentes religiosos que continuam a resistir e muitas vezes estão isolados do campo marxista popular. Recuperar a história da teologia da libertação da América Latina e identificar e alcançar as formas de resistência dentro da esfera religiosa é necessário para começar a construir pontes indispensáveis entre a fé e a luta popular.
A fim de construir sonhos e visões progressistas do futuro, devemos fomentar entre o povo a esperança que pode ser vivida em sua realidade cotidiana. Devemos também recuperar e traduzir nossa história e a luta pelos direitos sociais em organização popular, criando espaços de educação, cultura e comunidade nos quais o povo possa adquirir melhor compreensão da realidade e se engajar em experiências cotidianas de solidariedade coletiva, lazer e celebração. Nesses esforços, é importante não negligenciar ou descartar novas ou diferentes formas de interpretar o mundo, como por exemplo através da religião, mas, ao contrário, fomentar um diálogo aberto e respeitoso entre eles para construir a unidade em torno de valores progressistas compartilhados.
Embora não haja respostas fáceis, um ponto de partida é compreender os adversários da classe trabalhadora e como eles agem tanto em nível macro como micro. É essencial criar novos mecanismos de diálogo e construir um projeto coletivo e contra-hegemônico. Tal projeto não avançará sem uma compreensão profunda do que a classe trabalhadora deseja e do que a move a agir.
O marxista peruano José Carlos Mariátegui, usando o conceito de “agonia” de Miguel de Unamuno (o sofrimento ou luta interior que os humanos enfrentam), falou da necessidade de “reencantar” a classe trabalhadora; em outras palavras, de superar o desencanto das pessoas com a vida. Tanto os marxistas revolucionários quanto os cristãos revolucionários eram almas agonizantes, lutando por este re-encantamento.[19] Esta agonia revolucionária, para Mariátegui, se traduz na superação do antagonismo entre fé e ateísmo, equacionando emoção revolucionária e emoção religiosa. Na verdade, o que Mariátegui quis dizer é que o que nos move, como seres agônicos, em direção à justiça é mais do que qualquer instituição pode definir: é um sentimento profundo, um anseio por algo ainda não real, mas que procuramos construir como uma necessidade vital. Mariátegui amplia a forma habitual de falar sobre religião. Ele nos provoca, argumentando que uma revolução é sempre religiosa – não que tenha a ver com religião institucional, mas que procure responder aos sentimentos profundos e anseios que não são satisfeitos sob o capitalismo.
Notas
1Mariategui, ‘Man and Myth’, 383.
2 Franco, ‘Um olhar contra-hegemônico e pluralista’, 11–46.
3 Translator’s note: Terreiros are places where rituals for Candomblé and other Afro-Brazilian religions take place.
4 The War of Secession, or the American Civil War, took place in the United States between the states of the North and those of the South from 1861 to 1865. This conflict began when the southern states seceded from the Union and formed the Confederate States of America. The War of Secession was motivated by the differences between the two groups regarding the abolition of slavery and the expansion of new territories that were being occupied to the west.
5 Sousa, ‘O Nascimento do Fundamentalismo Cristão nos Estados Unidos’, 103–116.
6 Semeraro, ‘Gramsci e a religião’, 95.
7 Löwy, O que é cristianismo da libertação .
8 Stedile and Fernandes, Brava Gente, 19.
9 Alves, Dogmatismo e Tolerância.
10 Prashad, Balas de Washington, 101.
11 Étore Medeiros, ‘Boi, Bala e Bíblia contra Dilma’.
12 Cunha, Lopes, and Lui, Religião e política, 127.
13 Prashad, ‘Those Who Search for Dawn Don’t Fear the Night’; Prashad, ‘Bolivia Does Not Exist’.
14 Balloussier, ‘Cara típica do evangélico brasileiro é feminina e negra’; Balloussier, ‘Evangélicos veem Bolsonaro como o mais autoritário’.
15 Rojas Barragán and Herrera Farfán, Camilo Torres Restrepo: Polifonías Del Amor Eficaz, 293
16 Castro, Discurso no Congresso Cultural.
17Gramsci, Sotto la Mole.
18 Gramsci, Quaderni del cárcere, 1397.
19 Löwy, ‘Mística Revolucionária’, 105–116.