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Plataformas autoritárias: radicalização da extrema direita em meio à precariedade econômica no Brasil
Extrema Direita

Plataformas autoritárias: radicalização da extrema direita em meio à precariedade econômica no Brasil

Uma reflexão da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado sobre a relação entre extremismo e tecnologia

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Tempo de leitura: 10 minutos.

Foto: Agência Brasília / Flickr

Via Global Network on Extremism & Tecnology

Introdução

Quando comecei meu trabalho de campo em um mercado informal de rua no Brasil, fui recebido com a frase “Bem-vindo à selva”. Conheci Joana Souza, uma vendedora do mercado, em 1999, quando ela vendia produtos como brinquedos falsificados da Disney. Durante uma repressão policial de rotina, eu esperava que ela agisse em solidariedade aos colegas vizinhos que estavam sendo multados, mas, para minha surpresa, ela apoiou as autoridades. Em outra ocasião, enquanto Souza tentava vender um boné por R$ 15, outro vizinho invadiu as negociações, oferecendo o mesmo boné por R$ 10. Para meus interlocutores de pesquisa, a lei que governava a “selva” era “cada um por si”. Esse tipo de “neoliberalismo de baixo para cima”, como cunhado por Veronica Gago, contém as sementes da ideologia do livre mercado, com fraca solidariedade coletiva, alta competição e um forte senso de individualismo. No entanto, a resistência, a política cotidiana e a ajuda mútua também eram dimensões importantes das rotinas dos comerciantes. Eles eram indiferentes à política formal e seus votos eram difusos, oscilando da esquerda para a direita do espectro político, dependendo das conexões pessoais e dos interesses individuais.

Vinte e três anos depois, retomei meu trabalho de campo e descobri duas coisas. Em primeiro lugar, a rede que eu havia estudado começou a empreender em plataformas de mídia social. Em segundo lugar, o que é mais surpreendente, grande parte desses comerciantes agora apoiava ferozmente o ex-presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro. Depois de muitos anos fazendo etnografia “na pedra” – como os comerciantes descreveram a materialidade de seus negócios no cimento -, a pergunta permanece: até que ponto essa mudança tecnológica está impactando a radicalização política? Essa identificação política é um reflexo de visões políticas predispostas que já estavam latentes na “selva”? Ou as plataformas digitais os estão empurrando para a extrema direita?

Neste Insight, defendo que ambas as respostas são verdadeiras. Existem fatores de atração e de repulsão que possibilitam o encontro entre os trabalhadores precários e o populismo autoritário. Certos grupos estão predispostos a se alinhar com valores políticos reacionários, mas o mais importante é que a tecnologia está acelerando e, portanto, transformando esse processo. A primeira parte deste Insight define o trabalho em plataforma e suas ligações com o populismo autoritário. Em seguida, são detalhados os fatores de atração e de repulsão. A conclusão argumenta que as plataformas devem ser regulamentadas juntamente com políticas de emprego decente e justiça social.

Precariedade do trabalho e política autoritária

Meu projeto de pesquisa atual investiga o nexo entre a precariedade do trabalho e a política autoritária. Nossa equipe examina o uso de plataformas digitais em seis setores ocupacionais, a saber, beleza, limpeza, aplicativos de carona/entrega, varejo, alimentação e artesanato. Em nosso projeto, conceituamos plataformas digitais de trabalho ou “plataformização” como o fenômeno no qual as atividades econômicas são cada vez mais exercidas por meio de plataformas digitais, conectando prestadores de serviços e o público. Por plataforma, entendemos tanto os aplicativos (por exemplo, Uber) quanto as mídias sociais (por exemplo, Instagram, Facebook, etc.). Quando acadêmicos, formuladores de políticas e organizações internacionais discutem a plataformização, eles tendem a se concentrar no trabalho realizado por plataformas ou aplicativos projetados especificamente para atividades de trabalho. A incorporação das mídias sociais para estudar o trabalho em plataformas é uma inovação de nossa pesquisa, que visa a esclarecer como essas mídias são agentes ativos na produção de novas formas de trabalho mediadas pela tecnologia.

Este Insight se concentra no Brasil, mas o projeto também abrange a Índia e as Filipinas. Esses três países são economias emergentes marcadas por altas taxas de informalidade, mas também por uma leve mobilidade social que elevou milhões de pessoas acima da linha da pobreza. Os meios de subsistência dessas pessoas, no entanto, continuam precários. Partimos do princípio de que a economia de plataforma não inventou a política reacionária em meio aos trabalhadores precários. Em vez disso, afirmamos que ela facilita o encontro entre os trabalhadores e a extrema direita, potencialmente produzindo radicalização política. Além de vários problemas provocados pelo aumento contemporâneo da economia digital por meio de plataformas, essa relação também apresenta riscos à democracia.

Esses argumentos, no entanto, devem ser matizados. Algumas ocupações trabalhistas são mais propensas a apoiar o iliberalismo e, portanto, a cair na armadilha tecnológica que conecta trabalhadores e apoiadores da extrema direita. As cooperativas feministas que usam o Instagram para vender alimentos, por exemplo, provavelmente sofrerão menos impacto dos ecossistemas extremistas. Até o final do projeto, esperamos fornecer um mapa abrangente de diferentes níveis de influência política e radicalização. Com base em pesquisas anteriores e iniciais conduzidas até o momento entre motoristas de plataformas e vendedores de varejo no Brasil, é possível observar que a extrema direita ganha força por meio de uma combinação de fatores de atração e de pressão.

Os fatores de atração são a predisposição ideológica de contextos de trabalho não regulamentados que são animados pela ideologia do livre mercado, como a selva de Souza. Isso significa que as pessoas não são apenas vítimas passivas de uma Internet maliciosa, mas partes interessadas ativas que utilizam o mundo on-line para reafirmar suas visões de mundo, conectando-se on-line com indivíduos que pensam de forma relativamente semelhante.

Ao mesmo tempo, também existem fatores de pressão, como a “lógica algorítmica”, a infraestrutura tecnológica que faz com que os comerciantes encontrem a extrema direita. No contexto específico estudado do varejo de mídia social no Brasil, por exemplo, quanto mais os comerciantes crescem on-line, mais inclinados eles ficam a apoiar populistas autoritários.

Fatores do trabalho precário

O encontro entre o trabalho precário e a extrema direita é possível graças a uma combinação de quatro fatores principais.

O primeiro fator são as condições de trabalho. Os trabalhadores precários têm salários incertos e geralmente enfrentam endividamento e insegurança financeira, sendo vulneráveis a choques econômicos. Dependendo da atividade, a alta competição e o individualismo em meio a rotinas de trabalho intensivas são vitais para atingir as metas de renda. Os profissionais brasileiros de plataformas, entregadores de aplicativos e comerciantes de varejo no Instagram geralmente ficam ativos por mais de 12 horas por dia, operando sob intensa pressão autoimposta. O aumento do isolamento no contexto do trabalho em plataformas também deve ser considerado. Quando pessoas como Souza tinham que lutar por seu lugar na “selva”, geralmente era por meio de interações face a face com outras pessoas. O ambiente digital anula toda política local e territorializada e expõe os comerciantes individuais a conteúdos on-line tendenciosos, como influenciadores de marketing ou Youtubers alinhados com o ex-presidente Jair Bolsonaro.

O segundo fator é a dimensão subjetiva do trabalho. Nas economias emergentes, essa subjetividade é marcada por uma ambiguidade entre motivadores emocionais ativos e reativos. Por um lado, a raiva, o ódio contra as minorias e o ressentimento são respostas típicas à vulnerabilidade e à pressão competitiva. Por outro lado, incentivados pelos programas nacionais de desenvolvimento econômico, como a chamada “inclusão pelo consumo” no Brasil, os trabalhadores de plataformas precárias são motivados por aspirações de se tornarem de classe média. Esses trabalhadores estão ansiosos por rótulos como “empreendedorismo” para ressignificar ocupações que culturalmente têm sido associadas à subalternidade.

O terceiro fator que leva à radicalização da extrema direita, facilitada pelas condições de trabalho e pela subjetividade, é a cooptação populista da extrema direita. Líderes como Jair Bolsonaro e Narendra Modi impedem os direitos trabalhistas ao mesmo tempo em que apresentam uma narrativa populista vazia que soa encorajadora em nível individual. O ex-presidente brasileiro, por exemplo, foi contra o lockdown durante a pandemia, lançando a campanha “O Brasil não pode parar”, voltada para microempresários, autônomos e/ou trabalhadores informais que não podiam parar de trabalhar.

O quarto fator é a infraestrutura tecnológica das plataformas, como aplicativos de transporte e mídias sociais. Essas diversas plataformas têm em comum um obscuro raciocínio algorítmico baseado em recompensas. Os trabalhadores são incansavelmente classificados e pressionados a ter “curtidas” em uma estrutura piramidal exploradora que é, em essência, neoliberal. Nossa pesquisa mostra que, no contexto do varejo de mídia social, por exemplo, vendedores digitais não qualificados são impelidos a seguir influenciadores que ensinam ferramentas de marketing digital, maneiras de investir em criptomoedas e como se manter motivados e positivos para atingir metas financeiras.

No contexto preliminar da minha pesquisa atual, a grande maioria dos influenciadores (aproximadamente 88%) seguidos pela minha rede de pesquisa está alinhada com a extrema direita, apoiando diretamente o ex-presidente ou mostrando discretamente seus votos no dia da eleição. Aqui reside um paradoxo: os comerciantes precisam de habilidades específicas para crescer on-line, mas inevitavelmente caem em uma armadilha política digital – comerciantes como Souza, consequentemente, começam a seguir cada vez mais expoentes da extrema direita à medida que crescem on-line. Também precisamos levar em conta a intensa exposição desses trabalhadores à mídia social e a navegação em plataformas sociais nas quais a extrema direita se tornou predominante. As campanhas de líderes como Narendra Modi e Jair Bolsonaro foram pioneiras hábeis em compreender a importância de ocupar e disputar politicamente as mídias sociais.

Conclusão

Até o momento, temos fortes indícios em nossa pesquisa de que os trabalhadores de plataformas precárias estão sujeitos à radicalização da extrema direita por meio da tecnologia, o que intensifica, acelera e até mesmo transforma as opiniões políticas. Como antropóloga, não acredito que as pessoas sejam meras vítimas do ambiente digital; elas têm poder de ação. Entretanto, a caixa preta da infraestrutura tecnológica das plataformas e seus impactos na radicalização devem ser continuamente investigados e estudados com cautela pelos formuladores de políticas, porque os aspectos negativos da economia digital deixarão impactos duradouros no futuro da democracia global.

Enquanto isso, as características positivas da economia digital, ou seja, o potencial de formalização, as cooperativas, a solidariedade e os laços coletivos criados pelo mundo virtual, devem continuar visíveis para inspirar políticas que visem a formas justas e democráticas de empreendedorismo on-line. No momento, a extrema direita domina os corações em conflito de pessoas como Souza. Precisamos encontrar maneiras de fazer com que a democracia, a solidariedade e o coletivismo voltem a ser ideologicamente atraentes para as massas.

Um alvo tão complexo exige uma combinação de ações. As plataformas trabalhistas e as mídias sociais precisam ser responsáveis pelas atividades políticas e trabalhistas que permitem que se espalhem. Elas também devem ser responsáveis por recompensar os usuários que exibem conteúdo político e por desmonetizar os canais que promovem discursos de ódio e desinformação. Em diálogo com a sociedade civil e os movimentos sociais, os governos e as organizações internacionais devem ser mais firmes e rápidos na criação de um mecanismo democrático de regulamentação de plataformas que, sem abrir mão do princípio da liberdade de expressão, seja capaz de conter os impactos nefastos que as plataformas estão causando na democracia global. Por fim, e mais importante, a busca pela justiça social deve ser a base da formulação de políticas. O combate à desigualdade e a oferta de emprego pleno e decente são os principais desafios para superar o apelo populista e a consequente vulnerabilidade econômica.

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