Por Projeto Brasil Real é um País que Luta
Via Brasil Real é um País que Luta
Tempo de leitura: 10 minutos.
A história da Guerra de Canudos marca a história do povo brasileiro como um dos principais exemplos de resistência do país. A heróica luta – e as breves vitórias – dos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro no sertão baiano entre 1896 e 1897, foi retratada de diversas formas desde a célebre obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, considerado o primeiro livro reportagem brasileiro escrito após a experiência do autor acompanhando as tropas federais no sertão da Bahia como correspondente do jornal O Estado de São Paulo.
O livro é símbolo de uma das grandes contradições entre as narrativas sobre a história daquele movimento camponês. Marcado pelo determinismo racial tão comum no final do século XIX, reflete também uma série de consensos da época que marcaram as leituras sobre Canudos pelo país, mas também na própria região.
As ideias simplistas de que os canudenses lutavam por objetivos retrógrados perante o “progresso” trazido pela República recém declarada – que se utilizavam do caráter religioso messiânico do movimento e do monarquismo que este trazia consigo – foram parte de uma construção das elites sobre a formação da República brasileira que estava de acordo com os interesses dos poderosos da época, no caso as oligarquias latifundiárias temerosas daquele modelo de organização social comunal.
Canudos também marcou a memória das lutas brasileiras pela tenaz resistência contra as tropas federais invasoras, com a derrota sucessiva de batalhões deslocados para a região para acabar com o arraial canudense. Três vezes derrotados, o exército brasileiro só conseguiu sucesso, após enorme comoção na então capital do Rio de Janeiro, em sua quarta expedição e utilizando armamento de ponta da época.
A Guerra de Canudos, assim como a Guerra do Contestado, demonstrou as contradições daquele modelo republicano ditatorial que havia sido declarado através de um golpe de estado sem participação popular, apesar da importância da luta antimonarquista e abolicionista dos anos anteriores que levaram ao fim do Segundo Reinado.
A Guerra
A aldeia de Canudos surgiu às margens do rio Vaza-Barris e cresceu muito após a chegada de Antônio Conselheiro, no começo da década de 1880, chegando a 25 000 habitantes em poucos anos. Com seu desenvolvimento, o arraial foi batizado de Belo Monte.
O surgimento da vila causou incômodo entre os latifundiários da região, assim como na Igreja local, devido a sua independência e a migração de pessoas para o novo assentamento. Nesse processo, a mídia local desenvolveu a imagem de um perigo monarquista na região, que estaria a serviço de países estrangeiros que buscavam a restauração monárquica, e este perigo foi assim propagandeado por todo país.
É importante notar que os seguidores de Antônio Conselheiro não buscavam o enfrentamento militar. Sua origem enquanto camponeses que se reuniam através de laços comunitários religiosos ao redor do líder messiânico está diretamente relacionada à resposta ao sistema de divisão de trabalho ao qual eram submetidos, no qual a organização comunal e o trabalho coletivo representavam uma saída digna contra a miséria que viviam.
Entretanto, devido a um boato sobre possíveis ataques dos canudenses contra cidades da região, foi organizada uma ação militar bem relatada em documento da época:
“Estabelecia-se, sangrento, o 1º fogo previsto pelo Conselheiro, e a pacata Uauá transformava-se em violento território de combate. O próprio Tenente Pires Ferreira descreve o ataque destacando a “incrível ferocidade” dos assaltantes e a forma pouco convencional como organizavam suas manobras, isto é, usando apitos. A celeridade e a rapidez com que a luta se deu propiciou vantagem inicial aos conselheiristas. Adentraram ao arraial onde ocuparam algumas casas. A lógica, entretanto, prevaleceu. Armados e municiados com equipamentos mais modernos e letais, os soldados do 9º Batalhão de Infantaria impuseram pesadas baixas às forças belomontenses. A crueza do combate foi inegável, sendo que o uso de armas como “facões de folha-larga, chuços de vaqueiro, ferrões ou guiadas de três metros de comprimentos, foices, varapaus e forquilhas, sob o comando de Quinquim Coiam, utilizados em lutas de corpo a corpo produziam cenas dantescas. Foram entre 4 e 5 horas de pânico, sangue, horror e gestos de bravura e pânico. Contabilizadas as baixas de ambas facções, os números determinavam a vitória militar das tropas governamentais. No relatório oficial, Pires Ferreira informa que pereceram na batalha, dentre as hostes conselheiristas “cento e cinquenta, fora os feridos”.”
Após os combates, os canudenses se retiraram desmobilizando as forças que atacariam Canudos, desmoralizando a primeira expedição inicial. Em janeiro de 1887, uma nova expedição tentaria novamente atacar Canudos, sendo novamente repelida pelos seguidores de Conselheiro e perdendo mais de cem soldados na escaramuça.
Como reflexo das duas derrotas, o governo de Prudente de Morais designou o coronel Moreira César para a nova onda de repressão. Moreira César tornou-se famoso por sua violência contra os rebeldes da Revolução Federalista de 1983-1985 no sul do país. Em março de 1897, a nova leva das tropas federais partiram para, mais uma vez tentar, destruir a comunidade.
Com a notícia de uma nova tropa avançando contra Canudos, populares pobres da região foram em defesa de Canudos e de seu “homem santo”, incluindo figuras célebres como o chefe guerrilheiro sertanejo Pajeú, que tornou-se uma figura ícone da resistência popular no Nordeste. Enfrentando a nova força federal, que contava com mais de mil soldados, os canudenses novamente resistiram.
Apesar de contar também com canhões de artilharia Krupp, na ação na qual pela primeira vez armas de artilharia foram usadas contra a população brasileira, a terceira expedição contra Canudos também foi derrotada, tendo inclusive atingido e matado o coronel Moreira César. Após a desmoralização total da nova expedição, a questão de Canudos tornou-se um assunto ainda mais nacionalizado, levando à desproporcional reação do governo nos próximos meses.
A quarta expedição chegou na região no final de junho. Depois de perder grande quantidade de soldados, as forças federais finalmente chegaram em Canudos, atacando o arraial até setembro do mesmo ano, quando Antônio Conselheiro faleceu por motivos de saúde.
Os moradores restantes receberam então a garantia de vida das tropas em caso de rendição. Uma parte aceitou a oferta, mas após a rendição os homens foram presos e inúmeras mulheres e crianças foram degoladas no método que foi apelidado de “gravata vermelha”. O restante dos defensores foram assassinados até o último homem, num dos episódios posteriormente reconhecidos como um dos maiores crimes cometidos pelo Estado na história brasileira.
A memória viva de Canudos
Mesmo após o alagamento da área do antigo arraial e sua transformação num açude, a memória de Canudos continua viva entre os movimentos sociais. Assentamentos do MST, ocupações urbanas e inúmeros outros processos de luta ainda hoje carregam o nome de Canudos, de Pajeú e do Antônio Conselheiro.
Segundo o artigo do Brasil de Fato sobre José Américo Amorim, poeta da resistência desta luta:
A primeira Canudos foi destruída pelo fogo. Mais tarde, a cidade reconstruída foi alagada para a construção de um açude, e os descendentes retirados fundaram-na novamente, ali perto. “Eu acho que a ideia era que cobrindo de água escondia o palco do massacre e a vergonha”, considera José Américo. Mas, apesar das tentativas, a história não foi esquecida, e para isso a poesia teve e tem importante papel, seja na sua reconstrução, preservação ou divulgação. O artista explica que, sobre Canudos “por muito tempo nos livros de história apareciam duas linhas, coisa bem distante da realidade. Então a poesia, essa forma de expressar, fica muito mais fácil para as pessoas entenderem a realidade”. José Américo, através de seu projeto “A poética do ensinar e do aprender”, vem trabalhando com a poesia junto a alunos de escolas locais e cidades vizinhas e fazendo recitações nas visitas guiadas no Parque Estadual de Canudos, espalhando para mais longe as narrativas do lugar, já que estudantes de outros estados e visitantes de outras partes do mundo também passam por lá.
Hoje a memória viva de Canudos está, segundo José Américo, mais do que nas escolas e nos museus, “principalmente na cabeça da juventude”: “Hoje nós temos grupo de teatro, músicas, poesia”, narra. E declara: “Quando lá atrás eles degolaram nosso povo, cortando a cabeça com uma expressão bárbara e cruel, achavam que ali [nos] calaria, mas não, nós estamos aqui até hoje nessa resistência”. A memória permanece em todos os que levam “o legado de Antônio Conselheiro na luta por igualdade, por dias melhores”, diz o poeta. Luta que não ficou no passado, nem só no sertão. “Canudos é todo dia, todos os dias é dia de lutar, por direitos, por justiça. Canudos está espalhado pelo país nas favelas lutando por dignidade, está no campo, nas grandes cidades”, declara José. Por isso Canudos, para ele, precisa ser lembrado: “nós ainda somos fuzilados, pretos e pobres humilhados, e Canudos é essa chama viva de luta por mais justiça social”. Através da poesia, ele contribui para manter sua memória como exemplo de resistência para as lutas, tão necessárias ainda hoje: “Canudos lá no século XIX disse ‘não’ ao sistema opressor, ao sistema escravocrata, que até hoje ainda mata do litoral ao sertão. Então a poesia serve para expor isso, para abrir a mente dessa juventude que é a base do meu trabalho, essa juventude que recebo aqui de vários lugares do mundo”.
Canudos é mais uma parte desta história de luta do povo brasileiro e sua resistência permanece viva na memória não só dos sertanejos do sertão baiano, mas de todos os trabalhadores e trabalhadoras que lutam por dignidade até os dias de hoje.
Saiba mais
História, memória e identidade na Guerra de Canudos (Rodrigo Guimarães Motta PUC SP)
A guerra de Canudos e a cultura republicana nos jornais da capital federal (Maria Beatriz da Costa Baptista de Leão / PUC RJ)
A guerra de Canudos, ideologia e aparelhos ideológicos (Roberto Camargo Leite Moreira / FGV)
Guerra de Canudos (Anna Gabriela Oliveira de Souza / UEPB)
Os sertões de Euclídes da Cunha : uma (re)leitura estético-política da Guerra de Canudos (Ângela Pereira da Silva Oliveira / UFU)
O retrato da Guerra de Canudos a partir de Euclides da Cunha (Bruna Leite da Silva / UFBA)
Memórias, testemunhos e ficção sobre a guerra de Canudos (Tarcísio Fernandes Cordeiro / UFMG)
Canudos: messianismo e conflito social (Hoão Batista Arruda Pontes / UFCG)
Canudos revisitado: uma breve análise do que foi a utopia de Antônio Conselheiro (Revista Entrelaces)
Entre o dito e o não dito : os militares “heróis” e “comuns” da Guerra de Canudos (André Cavalcante Morato / UFS)
“Canudos é todo dia: todo dia é dia de lutar”, afirma poeta (Brasil de Fato)