Por Projeto Brasil Real é um País que Luta
Via Brasil Real é um País que Luta
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O período de estabelecimento da Primeira República no Brasil foi profundamente marcado por conflitos políticos, econômicos e sociais. As promessas de progresso com a instauração do regime republicano respondiam aos anseios das oligarquias capitalistas, grandes latifundiários que construíram seu poder econômico com base em uma estrutura violenta, colonialista e racista, que, em conjunto com os militares, derrubaram o sistema monárquico.
É evidente que a proclamação da República não foi uma resposta aos interesses do povo brasileiro como um todo. Não é possível, aliás, falar de povo como um todo em uma sociedade marcada pela escravidão, pela concentração de terras e pelo genocídio dos povos originários. A transição da monaquia para a república foi marcada pela manutenção e expansão das relações de poder, ainda que adaptdas sob novas formas, das oligarquias. Os motins e revoltas populares do período, como Canudos e a Revolta da Chibata, são expressões da insatisfação daqueles que eram abandonados ou esmagados pelo “progresso”.
Com o fortalecimento das elites agrárias, as disputas pela terra passaram a ocupar um papel central no cenário econômico, político e social do país. A concentração de terras e a expansão agrícola acirravam os conflitos entre os grandes latifundiários e camponeses posseiros, além dos povos originários e comunidades tradicionais em defesa de seu território, de sua cultura e seu modo de vida. Um dos palcos dessas disputas, no início do século XX, era o território disputados entre os estados do Paraná e Santa Catarina; aréa estratégica economicamente para a exploração de recursos naturais.
As tensões entre sertanejos, posseiros e pequenos agricultores e trabalhadores rurais que ocupavam tradicionalmente aquelas terras, fazendo delas seu território, e os grandes latifundiários, além das empresas interessadas na exploração dos recursos naturais, em especial a madeira, se acirravam. A responsabilidade sobre as terras devolutas, antes de competência exclusiva da União, concedida aos estados, acelerou a concessão aos grandes latifundiários, o que agravava ainda mais a situação dos posseiros, já afetados pela disputa territorial entre estados, estando completamente à merce dos proprietários de terra. A república só alcançava essa população para expulsá-la de seu território.
No ano de 1908, a construção da estrada de ferro Rio Grande – São Paulo, uma rota comercial planejada para ligar diretamente o estado de São Paulo ao sul do país em razão do crescimento da exploração dos recursos naturais, foi entregue ao grande empresário estadunidense Percival Farquhar, proprietário da Brazil Railway Company e responsável por grandes investimentos em ferrovias, na mineração e na exploração de matéria-prima não só no Brasil, mas na América Latina como um todo. A construção narrativa que justificava o avanço da especulação sobre aquele território era a de levar “progresso” e “desenvolver” as terras ricas, mas “mal aproveitadas”, “abandonadas”, invisibilizando a população que já habitava o território e era um empecilho para o avanço da exploração capitalista daquelas terras.
A concessão da construção da linha férrea veio acompanhada da concessão de extensas faixas de terra, em um raio de 15 km de cada lado da ferrovia, totalizando 6.696 km2 que foram entregues para a empresa. Consideradas terras devolutas, ou seja, não ocupadas, desabitadas, a presença das comunidades indígenas, dos posseiros e trabalhadores que ocupavam há tempo aquele território foi completamente desconsiderada e as terras desapropriadas para a exploração dos recursos florestais, tarefa que ficou incumbida à Southern Brazil Lumber & Colonization Company, mais conhecida como Lumber Company, fundada anteriormente por Farquhar que já previa os montantes imensos de lucro que poderia angariar com a extração de madeira. Os impactos sociais da operação aumentaram as tensões existentes no território e agravaram o conflito pelas terras.
Somado ao desmatamento responsável pela degradação de extensas áreas da floresta, afetando os ecossistemas e a biodiversidade, pelo aumento da erosão do solo e do assoreamento dos rios, além de destruir os recursos de subsistência das populações locais, não só os posseiros, pequenos proprietários e povos indígenas foram afetados, mas também os operários responsáveis pelas construção da ferrovia. Em 1910, com a conclusão das obras, a Brazil Railway Company abandonou 4.000 trabalhadores à própria sorte, não cumprindo com o compromisso de custear o retorno para as suas cidades. Essa massa de trabalhadores sem recursos e agora sem meios de garantir sua sobrevivência, somava-se aos nativos atingidos.
A situação de revolta gerada pelo avanço dos capitalistas sobre o território das terras contestadas, somada ao abandono do poder público, agravou-se com a chegada de figuras messiânicas como José Maria de Santo Agostinho, que pregava a fundação de um “novo mundo” livre de injustiças e opressão. Em 1911, José Maria fundou uma comunidade, onde reuniu milhares de sertanejos descontentes. Essas comunidades, conhecidas como “redutos”, eram organizadas sob uma liderança mística e religiosa, desafiando a autoridade do Estado e as empresas estrangeiras. Eram espaços autossuficientes de resistência, vilarejos formados pelas populações que resistiam à expulsão das terras que ocupavam.
Em outubro de 1912, a tensão chegou ao auge quando as forças policiais do Paraná tentaram dispersar os sertanejos que haviam se dirigido para a localidade de Irani, no território de Palmas, uma cidade que estava, à época, sob a jurisdição do Paraná. A movimentação dos seguidores de José Maria foi vista como uma tentativa de ocupação daquelas terras; nesse momento tem início o que ficou conhecido como Guerra do Contestado. Os posseiros resistiram, resultando em um confronto violento onde o próprio José Maria foi morto. Sua morte, no entanto, só fortaleceu o movimento.
A partir de 1913, o conflito se intensificou. Diversos redutos foram estabelecidos pelos seguidores de José Maria, e a resistência armada aumentou. As forças do governo federal, as forças estaduais do Paraná e Santa Catarina e a Companhia Lumber intensificaram as ofensivas contra os posseiros, mas encontraram forte resistência. Os revoltosos usaram táticas de guerrilha e conheciam bem o terreno, dificultando as operações militares. Em 1914, o governo brasileiro enviou o Exército para a região na tentativa de acabar com a revolta. Apesar de algumas vitórias iniciais, o conflito continuou. A resistência dos sertanejos, motivada pela injustiça sofrida e pela esperança depositada nas profecias de José Maria, continuava forte. Em diversas ocasiões, os redutos eram destruídos apenas para surgirem em outros lugares.
Com o conflito se arrastando, o governo brasileiro decidiu intensificar a ofensiva em 1915. Grandes contingentes de tropas federais, equipados com armamentos pesados, foram enviados para a região. A guerra tornou-se mais sangrenta, com massacres de sertanejos e destruição dos redutos. O número de soldados e a superioridade tecnológica das forças governamentais começou a fazer diferença, e os sertanejos foram aos poucos derrotados. Em agosto de 1916, o último grande reduto sertanejo, em Santa Maria, foi finalmente destruído. A guerra tinha chegado ao fim, mas não sem um banho de sangue que resultou em cerca de 8 mil mortos e diversas comunidades destruídas.
A Guerra do Contestado coloca em evidência o processo de violência e espoliação que marca o desenvolvimento histórico do Brasil enquanto país. É mais um dos episódios onde a “civilização” e o “progresso” vem acompanhados da barbárie e da destruição. Seria possível falar em desenvolvimento? Desenvolvimento para quem? No capitalismo não é possível pensar em desenvolvimento sem exploração, sem violência, sem destruição. Foi às custas do massacre dos povos originários, da invasão e destruição de suas terras que o mercado se desenvolveu no Brasil e que se estabeleceram os grandes oligarcas.
Ainda hoje, a disputa contra um projeto desenvolvimentista que não rompe com a lógica capitalista de acumulação segue sendo central. O avanço da exploração do petróleo, da mineração e do agronegócio ameaçam a natureza e a nossa própria sobrevivência. A heróica resistência dos sertanejos do contestado que batalharam em defesa de sua vida e de seu território contra a devastação e a exploração são exemplos na luta por um projeto de sociedade que precisa ser construída desde baixo, na resistência contra um sistema que coloca o lucro acima da vida.
Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_do_Contestado
VALENTINI, Delmir José; RADIN, José Carlos. A Guerra do Contestado e a expansão da colonização. Esboços: histórias em contextos globais, v. 19, n. 28, p. 127-150, 2012.
CHMURA, Márcia; GEMELLI, Diane Daniela. Território Contestado: uma abordagem acerca dos desdobramentos da Guerra do contestado (1912-1916) e a luta da população cabocla por terra-território. In: Congresso Internacional de Política Social e Serviço Social: desafios contemporâneos; Seminário Nacional de Território e Gestão de Políticas Sociais; Congresso de Direito à Cidade e Justiça Ambiental. 2022. p. e2576-e2576.
FRAGA, Nilson Cesar; LUDKA, Vanessa Maria. 100 anos da Guerra do Contestado, a maior guerra camponesa na América do Sul (1912/2012): uma análise dos efeitos sobre o território sul-brasileiro. COLOQUIO INTERNACIONAL DE GEOCRÍTICA: LAS INDEPENDENCIAS Y CONSTRUCCIÓN DE ESTADOS NACIONALES: PODER, TERRITORIALIZACIÓN, SIGLOS XIX-XX, n. 12, p. 101-118, 2012.
Saiba Mais
Veredas de um grande sertão: a Guerra do Contestado e a modernização do Exército Brasileiro (Rogério Rosa Rodrigues / UFRJ)
Coerção e consenso na Primeira República: a Guerra do Contestado (1912-1916) (Tarcísio Motta de Carvalho / UFF)
A guerra do contestado sob a ótica da obra o jagunço: violência, gênero, memória e resistência (Juliana Maciel / UPF)
Uma análise historiográfica do conflito do contestado (André de Oliveira Ramilo / UNESC)
Irresolução do Contestado: do conflito de terras à violação da dignidade cultural e ambiental do caboclo (Renata Marafon / Revista Videre)
Guerra do Contestado: mímesis e políticas da memória (Susan Aparecida de Oliveira / UFSC)
Guerra, cerco, fome e epidemias: memórias e experiências dos sertanejos do Contestado (SCIELO)
Guerra do Contestado: o processo de rendição (Soeli Regina Lima e Eloy Tonon / PUCG)
Guerra do Contestado. Os reflexos cem anos depois (Instituto Humanitas)