
Debate sobre o aborto na Polônia toma rumo perigoso com ação de extrema direita
Neofascistas poloneses podem representar ameaça aos direitos reprodutivos no país
Foto: SD/Reprodução
O debate sobre o aborto na Polônia voltou a tomar um rumo perigoso — desta vez provocado pelo eurodeputado de extrema direita Grzegorz Braun, que invadiu um hospital polonês para tentar realizar uma “prisão de cidadão” contra um médico que realizava um aborto tardio indicado por razões médicas. Braun, um aspirante à presidência vindo da extrema direita nas eleições previstas para maio, acusou o médico de cometer “assassinato”, transmitindo ao vivo sua encenação política para mobilizar sua base conservadora.
Atualmente, o aborto é legal na Polônia apenas em duas circunstâncias: se a gravidez for resultado de estupro (até 12 semanas) ou se representar risco à vida ou saúde da mulher. O terceiro motivo legal — anomalias fetais graves — foi abolido em 2020, quando o tribunal constitucional, controlado pelo partido Lei e Justiça (PiS), considerou a cláusula inconstitucional. Isso reduziu em 90% o número de abortos realizados em hospitais. Desde então, o aborto deixou de ser apenas uma questão médica para se tornar uma arma política da extrema-direita — usada para polarizar, controlar e desviar a atenção.
Com a aproximação das eleições presidenciais, os ânimos estão acirrados. Braun não está sozinho. Sławomir Mentzen, outra figura da extrema-direita com aspirações presidenciais, compartilha da retórica antiaborto de Braun e também propaga narrativas anti-ucranianas que ecoam assustadoramente os discursos do Kremlin. Ambos culpam os ucranianos — mais de 1,5 milhão deles buscaram refúgio na Polônia — apesar da escassez persistente de mão de obra e do fato de a economia polonesa ser a que mais cresce na Europa. Essa narrativa, embora falsa, ressoa entre eleitores que enfrentam inflação e crise habitacional, mesmo com o crescimento econômico que ainda não se reflete na vida da maioria. Em tempos de dificuldades sociais, ideias extremas que vitimizam e culpam os outros são especialmente perigosas. E a sociedade polonesa claramente ainda não superou o papel de vítima baseado no martírio e em séculos de traumas — uma ferramenta explorada pela extrema-direita para sabotar o desenvolvimento do país como sociedade.
O aborto ainda é criminalizado na Polônia — quem ajuda uma mulher a abortar pode pegar até três anos de prisão. Em 2023, Justyna Wydrzyńska, uma das fundadoras da organização Abortion Dream Team, foi considerada culpada de auxiliar uma mulher a interromper a gravidez e foi condenada a serviços comunitários. No entanto, o tribunal determinou um novo julgamento para o início de 2025.
Uma proposta legislativa no último verão tentou descriminalizar a assistência ao aborto até 12 semanas, mas não obteve apoio suficiente. Na maior parte da Europa, o aborto é legal mediante solicitação até determinado ponto — entre 12 e 24 semanas em países como França, Alemanha e Holanda. A Polônia continua sendo uma exceção.
O novo governo de Donald Tusk, apesar das promessas de mudança, não conseguiu avançar na reforma do aborto. Isso se deve em grande parte ao poder de veto do presidente Andrzej Duda, afiliado ao PiS, que bloqueia legislações progressistas. A coalizão de Tusk também inclui o Partido do Povo Polonês (PSL), um grupo conservador que se opõe tanto à liberalização do aborto quanto à união civil (tanto para casais heterossexuais quanto homoafetivos). Como resultado, a Polônia continua sendo um país onde casais do mesmo sexo não têm reconhecimento legal — sem união civil, sem casamento igualitário, sem direitos garantidos.
A eleição presidencial que se aproxima pode ser um ponto de virada. Rafał Trzaskowski, atual prefeito de Varsóvia e candidato da Coalizão Cívica (de centro-direita liberal) de Tusk, tem um histórico ambíguo. Por um lado, foi o primeiro prefeito a apoiar oficialmente a Parada do Orgulho de Varsóvia, sinalizando apoio aos direitos LGBTQ+. Por outro, em uma tentativa de atrair eleitores conservadores, propôs recentemente cortar benefícios sociais de mulheres ucranianas que não trabalham — uma política amplamente criticada por fomentar a xenofobia.
A tentativa de Trzaskowski de se aproximar da direita pode ser tática, mas corre o risco de afastar os eleitores progressistas. Seu adversário, Karol Nawrocki, candidato apoiado pelo PiS, está ganhando força. Uma vitória de Nawrocki daria novamente à direita alinhada ao PiS poder de veto, o que provavelmente paralisaria o governo de Tusk e impediria qualquer reforma social significativa.
Se Trzaskowski vencer, isso pode dar força à Coalizão Cívica para romper com o PSL e com o Polônia 2050, outro grupo centrista-liberal que bloqueia a reforma do aborto. Eleições antecipadas e uma nova composição política poderiam finalmente permitir avanços, tanto em direitos reprodutivos quanto na proteção a pessoas LGBTQ+.
Mas muitos na Polônia estão cansados. Cansados de lutar. Cansados de protestar. À sombra de crises globais — guerra na Ucrânia e em Gaza, mudanças climáticas, inflação — a sobrevivência cotidiana tem prioridade. As manifestações que antes lotavam as ruas após a decisão sobre o aborto em 2020 hoje parecem uma lembrança distante.
Ainda assim, o silêncio não é uma opção. Se os últimos anos nos ensinaram algo — da revogação de Roe v. Wade pela Suprema Corte dos EUA, à proibição de marchas do orgulho na Hungria, e à decisão do Supremo Tribunal do Reino Unido sobre a definição de “mulher” — é que direitos conquistados podem ser retirados. Especialmente os direitos das mulheres e das minorias. Esses são sempre os primeiros a serem questionados — e os mais fáceis de serem corroídos.
Talvez a resistência precise assumir novas formas agora. Não apenas nas marchas, mas nas conversas do dia a dia. Talvez esteja nos pequenos momentos: ao confrontar uma piada anti-ucraniana na mesa de jantar, ao corrigir a propaganda “pró-vida” do avô, ao se recusar a deixar o ódio passar despercebido, mesmo em ambientes privados.
A mudança não acontecerá da noite para o dia. Mas se começarmos por nossas famílias, nossos vizinhos, nossas comunidades locais — talvez não precise sempre terminar em protestos. E talvez os direitos das mulheres e das minorias deixem de ser usados como armas políticas quando a sociedade deixar de aceitar o discurso de ódio como parte natural do debate público.