Via BBC Brasil
Jake Davison, o homem suspeito de matar cinco pessoas na cidade britânica de Plymouth no último dia 14 de agosto de 2022 – o pior ataque a tiros visto na última década no Reino Unido -, discutia ativamente nas redes sociais o movimento “incel”.
A expressão vem da junção das palavras “involuntary celibates” e descreve homens jovens que se definem como “celibatários involuntários”.
Pelo menos dois assassinatos em massa anteriores nos Estados Unidos já haviam chamado a atenção para as atividades online desses grupos.
Mas o que sabemos sobre as pessoas que participam desses fóruns?
Fracassos e frustrações
“Em primeiro lugar, é óbvio que não tenho muitas esperanças de atrair uma mulher.”
Jack Peterson é um dos milhares de homens jovens que visitam fóruns “incel” no Reddit e em outros websites.
“Eu tive duas experiências negativas de relacionamentos e isso me fez sentir, você sabe… é difícil abandonar o meu passado e começar um novo relacionamento”, diz ele. “Eu tive mulheres que me fizeram coisas bem ruins.”
Esses temas gerais de fracassos e frustrações – além de raiva e ódio – são comuns nos fóruns “incel”.
A reportagem da BBC conversou com vários jovens que se autodenominam “incels”. São adolescentes ou garotos com pouco mais de 20 anos, que sofreram rejeição ou tiveram encontros ruins com mulheres e visitam fóruns de mensagens para tentar sair da solidão.
O que encontram são um grupo de homens cheios de raiva fortalecendo a ideia de que eles perderam a “loteria genética” e não há nada que possam fazer a respeito.
Jack tem um canal no YouTube e um podcast. Ele é um dos poucos “incels” abertos para falar com a imprensa após os ataques que mataram 10 pessoas em Toronto em 2018.
Outros concordaram em falar sob anonimato. Seja por vergonha, porque não tiveram sucesso em seus relacionamentos, ou porque querem esconder opiniões extremistas.
Um “incel” do Reino Unido – vamos chamá-lo de Liam – é ativo nos fóruns desde jovem. Ele está desempregado e vive em casa com a família.
E admite: “Adquiri esse tipo de visão misógina que normalmente não ajuda na minha vida”.
Eu pergunto diretamente: “Você odeia as mulheres?”
“De certa forma, sim”, afirma, gaguejando. “Eu tento evitar, mas acabo… acabo falando coisas que realmente não deveria, só porque estava observando os fóruns.”
Nossa conversa é meio afetada, cheia de pausas e às vezes perde o foco. Pergunto a Liam que tipo de coisas ele diz na vida real, mas acha que não deveria dizer. Ele enumera uma série de insultos impublicáveis que profere contra as mulheres.
Mas esse comportamento é resultado do tempo passado nas comunidades “incel”?
“Acho que não posso realmente afirmar se há relação, porque, quando você é mais jovem, provavelmente não acabaria dizendo essas coisas. Mas acho que eu não teria [dito] antes.”
“É isso que essas comunidades são”, acrescenta. “Elas absorvem você para entrar nessa caixa de ressonância de pessoas que sofrem problemas similares.”
“Você pensa em algo pequeno… e aí você vê outras pessoas pensando em coisas muito mais radicais. Então você acha que as coisas pequenas são aceitáveis.”
As coisas radicais mencionadas por Liam são facilmente visíveis nos quadros de mensagens “incel”.
Sexo e genética
A ideia de que todas as mulheres só buscam dinheiro, são promíscuas e manipuladoras aparece com frequência nas conversas “incel”, onde as mulheres atraentes são particularmente chamadas de “Stacys”.
“Stacys” são objetos de desejo e de ridicularização. No seu mundo próprio, os “incels” acreditam que as “Stacys” sempre escolherão os chamados “Chads” em vez deles.
“Chad” é uma caricatura de um homem sexualmente bem sucedido. E as comparações vão além da personalidade ou auto-confiança. Muitos “incels” acreditam que eles são geneticamente inferiores aos “Chads”.
Chad é frequentemente ilustrado como um rapaz bem-sucedido, com mechas loiras e músculos volumosos (que ele exibe em calças de cor verde neon). Ele tem um carro esportivo e, mais que isso, ele tem um atributo físico invejado pelos “incels” – a linha da mandíbula marcada.
Essas caricaturas parecem cômicas, mas são importantes, pois elas criam uma mentalidade de “nós contra eles”. Os “incels” acreditam que sexo, amor e felicidade estão fora do seu alcance e existem apenas para os outros.
Eles são particularmente conduzidos para a teoria niilista “black pill” (pílula preta) – a ideia de que eles são os únicos que compreendem que o jogo de sexo e atração é uma fraude desde o nascimento.
Autoajuda ou positividade são reprovadas nos fóruns “incel”. Qualquer um que interaja com mulheres com sucesso é automaticamente chamado de “fakecel” – ou “falso incel”.
As comunidades “incel” se desenvolveram em plataformas como Reddit, Facebook, 4chan e em sites administrados pelos próprios “incels”. Existem também grupos contrários aos “incels” que ridicularizam suas ideias. Foi em um desses grupos de oposição que encontrei um “ex-incel”.
Matthew (nome fictício) conheceu os incels no 4chan, um fórum de discussões anônimo em que costumam circular mensagens extremista.
Ele conta o que o atraiu ao grupo aos 15 anos: “Eu estava muito acima do peso. Era socialmente inepto e meu círculo de amizades era muito restrito”. “Por isso, eu era muito inseguro.”
“Uma garota que partiu meu coração fortaleceu ainda mais essa insegurança.”
Levou um ano para que o comportamento de Matthew com as mulheres se tornasse extremista.
“Eu estava ressentido com uma pessoa específica”, afirma ele. “Mas, depois de falar com as pessoas na internet, eles acabaram me convencendo que [a crueldade] era um defeito comum das mulheres. O que era algo terrível, agora que penso sobre isso.”
“Era a ideia de que todas as mulheres seriam naturalmente manipuladoras. Todas as mulheres tinham a intenção de explorar os homens.”
Assassinato em massa
Um herói do mundo “incel” – possivelmente um tanto irônico – é Elliot Rodger. Em 2014, ele matou seis pessoas e atirou em si próprio.
Em um manifesto desconexo, repleto de insultos racistas e misóginos, Rodger reclamou sobre o fato de que as mulheres não queriam fazer sexo com ele.
Embora o manifesto não mencionasse “incels” especificamente, seus atos são constantemente discutidos nos fóruns “incel”. Alguns comentários soam como uma tentativa de fazer piada, outros parecem mais sérios.
Vi em uma conversa em um fórum alguém dizer que queria tirar a própria vida e vários comentários sugeriram violência.
Alguém disse: “NÃO seja egoísta. Vá a uma escola primária e mate algumas crianças antes de cometer suicídio. Por favor!?!”
Mensagens como essa não são incomuns na comunidade incel. Quando alguém menciona que tem pensamentos suicidas, essa pessoa frequentemente é incitada por outros no grupo.
Enquanto falamos, Liam, o jovem do Reino Unido envolvido com grupos incel, tenta brincar com o massacre cometido por Rodger.
“Não acho que ele estivesse tão errado”, afirma, em meio a risos nervosos. Quando insisto, ele responde: “É senso comum, é errado matar pessoas.”
Ele admite que os fóruns “incel” não são lugares para procurar apoio se você estiver com raiva ou pensamentos suicidas.
“As pessoas não tentam suavizar as coisas como se faz normalmente”, afirma ele.
Vigilância
A moderação de grupos “incels” tem sido um tanto permissiva. O Reddit fez tentativas de remover comunidades “incel” de sua plataforma, mas muitos grupos permaneceram online.
Existem também indivíduos que acompanham os fóruns “incel”.
Eu falei com Emily (nome fictício), uma mulher canadense que vem observando a comunidade “incel” de Toronto há anos. Ela até fingiu ser um homem em uma conta do Reddit para tentar se relacionar com eles.
Emily está preocupada especificamente com conversas que tem visto desde o ataque de Toronto. Embora alguns “incels” estejam tentando desesperadamente distanciar-se do agressor, outros estão sabotando essa mensagem.
“No dia seguinte ao ataque, vi um estudante britânico que era um “incel”. Ele não foi admitido na faculdade de medicina porque, segundo ele, uma mulher o entrevistou e achou que ele era feio demais para ser médico”, explica ela.
“Ele estava planejando se matar naquela noite e havia pessoas na seção de comentários incentivando que ele buscasse vingança e ‘não caísse sozinho'”, diz ela.
“Eles estão postando memes violentos. Estão incentivando os demais a atacar as pessoas e ninguém está fazendo nada sobre isso. Se o Estado Islâmico estivesse fazendo algo assim, seria impedido imediatamente e as pessoas seriam presas.”
Emily afirma que há uma comunidade “incel” particularmente ativa em Toronto – possivelmente devido ao clima político no Canadá, cujo primeiro-ministro se autodenomina feminista.
“Acho que as pessoas se sentem oprimidas quando a igualdade fica mais próxima”, afirma. “Se você alguma vez foi o maioral e agora quase todos estão no mesmo nível, você se sente ameaçado.”
Também parece haver proximidade entre a cultura “incel” e o movimento antifeminista e hipernacionalista da extrema direita. Esses dois movimentos veem mundo pela lente da genética de grupo, com estereótipos raciais, e se consideram grupos minoritários difamados injustamente e atacados pelo politicamente correto. E eles compartilham o mesmo senso de humor, praticamente sem filtros.
Matthew, o ex-“incel” da Austrália, saiu do movimento, em parte, porque ele se transformou em algo político.
“Antigamente, não era tão hostil como hoje”, relembra ele. “Existem instigadores – pessoas nos fóruns que incitam sentimentos de raiva. Eles pressionam as pessoas para movimentos frequentemente reacionários, principalmente de extrema direita.”
“Eu deixei de me identificar como ‘incel’ no final de 2016. Foi quando o discurso político começou a esquentar muito na Austrália”, relembra ele. “Eles tratavam simplesmente de colocar a culpa de tudo nas mulheres.”
Matthew agora está na universidade e afirma que encontrar novas pessoas tornou mais fácil socializar-se e falar com as mulheres. Mas ele se preocupa com outros “incels” mais reclusos, que podem achar a mudança difícil.
A mudança
Em meio a todo o ódio online, a recente atenção após o ataque de Toronto parece ter estimulado alguns “incels” a mudar de opinião.
Alguns dias depois que o entrevistei, Jack Peterson postou um vídeo intitulado “Por que estou deixando os ‘incels'” (em tradução livre do inglês). Liguei novamente para ele, para perguntar a razão.
“Estou apenas ocupado sendo produtivo, indo para a cidade, viajando e encontrando uma porção de pessoas diferentes”, disse ele. “Falar com a CNN, a BBC e [o jornal britânico] The Sun fez com que eu compreendesse que o meu dia a dia é muito triste e monótono.”
“E me fez compreender que não posso voltar a sentar em um fórum o dia inteiro, falando de como sou infeliz, e fazer podcasts sobre isso. Eu tenho que mudar.”
“Mesmo se você for uma pessoa normal que vive com sua mãe e fizer vídeos contando como você é um fracassado, você ainda pode ter algum impacto no mundo. E isso me deu confiança.”
Depois de toda a atenção da mídia, Jack notou que estava recebendo bom feedback de fontes inesperadas.
“Eu recebi comentários positivos de diversas feministas e pessoas de esquerda. Enquanto a comunidade ‘incel’ estava me dizendo para me matar. Eu senti que… talvez isso não seja saudável para mim.”
E Emily, a mulher canadense, demonstra surpreendente empatia por uma comunidade que expressa essas visões extremistas. Eu perguntei o que ela diria para os “incels” que lessem esta reportagem.
“Se você projetar amor para o mundo, você receberá amor de volta”, aconselha ela. “Se você for negativo com as mulheres, elas nunca irão querer ter um relacionamento com você.”
“Por isso, você precisa fazer um enorme esforço de consciência. O mundo não tem lugar para o ódio. As pessoas são amistosas. Você não é feio. Você importa.”