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Monstros vs. Nazis: Margaret Killjoy, do Feminazgûl, sobre o Black Metal Antifascista
Cultura e Esporte

Monstros vs. Nazis: Margaret Killjoy, do Feminazgûl, sobre o Black Metal Antifascista

Um relato da artista feminista antifascista defendendo suas posições na cena do heavy metal

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Via The Quietus

Tempo de leitura: 11 minutos.

Há cerca de quinze anos, peguei um ônibus em Amsterdã para ir a Roterdã tentar enfrentar nazistas. Não sou exatamente uma lutadora de rua, sejamos honestos. Especialmente hoje em dia, sou mais uma torcedora antifascista do que qualquer outra coisa, então eu aproveito essa história ao máximo para parecer mais radical do que sou. Mas aconteceu, e é relevante, então vou contá-la.

Alguns nazistas em Roterdã haviam incendiado uma mesquita. Quando a comunidade tentou reconstruí-la, os nazistas ameaçaram impedir. Então, antifascistas de todo o país pegaram ônibus para ir até lá defender a mesquita.

Meu ônibus não chegou. A polícia holandesa prendeu todos os antifascistas que conseguiu encontrar antes mesmo de entrarmos na cidade e, quando chegamos, fizeram o motorista nos levar direto para a cadeia. Todos no ônibus, nenhum dos quais eu conhecia, quiseram me proteger por eu ser estrangeira. Todos fingiram não ser holandeses, que só falavam inglês. Quatro deles foram comigo para a detenção de estrangeiros e só admitiram sua nacionalidade quando eu estava sendo liberada.

Esses antifascistas foram – e ainda são – algumas das pessoas mais corajosas que já conheci. Não eram particularmente gentis, ou carinhosos, ou empáticos… não mais nem menos do que qualquer outra pessoa. Eles me defenderam do Estado pela mesma razão que defenderam os muçulmanos dos nazistas: porque eram antifascistas, comprometidos com a luta contra os sistemas de opressão.

Ah, e muitos desses antifascistas… eram skinheads.


A cultura skinhead começou como uma subcultura operária multirracial, e muitos skinheads, talvez a maioria, se recusam a deixar os nazistas tomarem isso deles.

Uma amiga minha é uma mulher minúscula que passa os dias odiando todo mundo, carrancuda, ouvindo black metal, adorando os deuses antigos e tatuando símbolos pagãos nórdicos no corpo. Ela também escreve poesia. Ela também rastreia atividades fascistas. Quando os nazistas foram à cidade dela para desfilar com suas suásticas, ela pegou a caminhonete e dirigiu por toda a cidade. Não necessariamente para enfrentar os nazistas. Ela procurava pessoas que precisassem de carona para sair do perigo.

Ela não vai deixar os nazistas tomarem sua subcultura, sua herança, ou sua religião.

Ela é uma das minhas heroínas.


O black metal é um espaço politicamente disputado. Há uma ampla gama de bandas e fãs de esquerda e anarquistas. E, como é bem conhecido, mais de alguns nazistas. Claro, a maioria dos fãs e bandas não tem muito engajamento político e estão apenas ali pelo som sombrio, extremo e belo.

Sou anarquista e antifascista, e meu problema não é com nazistas tocando em shows, é com nazistas respirando. Mas entendo por que são atraídos pelo gênero.

Mesmo que o fascismo — talvez o exemplo mais claro de ideologia autoritária já criada — seja o oposto do anarquismo, entendo por que ambos somos atraídos por esse mesmo poço escuro. Uma subcultura musical também é uma cultura estética. Fazemos música – e arte visual e moda – para expressar esteticamente certas ideias. Há muitas ideias para explorar no black metal. A beleza selvagem, caótica e sombria da natureza. As guerras que travamos contra a sociedade. Isolamento, luto e perda. A aceitação – e celebração – da mortalidade. Os deuses antigos, ou Satanás, ou quaisquer espíritos de onde tiramos poder.

Anarquistas têm motivos para romantizar essas ideias. Fascistas também. É perigoso romantizar ideias que também atraem nazistas. Temos que ter cuidado, estar alertas. Mas o que não podemos fazer é abandonar essas ideias, esse terreno cultural e estético, aos fascistas. Temos que lutar. Os dois lados de uma guerra ancestral podem venerar o mesmo deus da guerra. Isso não significa que qualquer lado esteja errado em fazê-lo. Veneramos deuses, ou conceitos, para tirar deles coragem – para tirar poder.

Manter o terreno estético e cultural nos dá poder.


Existe uma guerra cultural acontecendo ao nosso redor. Existem guerras reais, e existem guerras políticas, mas a guerra cultural também importa. Os fascistas vêm travando conscientemente essa guerra há algum tempo. Como ouvi de antifascistas mais ativos do que eu, há um tempo os nazistas perceberam que não estavam indo longe com suásticas e gritos, então começaram a trabalhar de forma “apolítica”. Especificamente, decidiram promover valores culturais que servem à agenda nazista. Alguns desses valores são bandeiras vermelhas óbvias: nacionalismo, sangue-e-solo, anti-multiculturalismo. Outros são bem mais complexos:

glória, honra, lealdade, reverência pela família.


Como anarquista, prefiro usar o coração e a política nas mangas. Não quero enganar ninguém para que se torne anarquista. Não acredito que meus valores devam ser compartilhados por todo mundo. Não acredito na supremacia ideológica. Só acredito na minha autonomia pessoal. Quando compartilho valores culturais, quero que as pessoas saibam de onde venho, para que possam decidir se confiam em mim. Para mim, isso é uma das bases do trabalho cultural anti-autoritário.

Mas às vezes me pego promovendo valores culturais semelhantes aos dos fascistas. Preciso tomar cuidado. Peguemos a ideia de lealdade. Não acredito em lealdade, não exatamente. Acredito em solidariedade. São valores sociais comparáveis, mas a diferença importa. Lealdade, como entendo, é sobre subordinação. Subordinação de um a outro. A lealdade geralmente é hierárquica. Solidariedade é entre iguais.

Também detesto brigar por semântica, e há quem use “lealdade” sem relação com hierarquia. Ou que veja a lealdade como um ato do indivíduo subordinado a um valor maior. Lealdade à família ou amigos, por exemplo, pode ser entendida como um ato em prol de um corpo social maior. Não é como eu prefiro descrever, mas não tenho problema com quem o faz.


Essa ideia do indivíduo se mostrando leal ao corpo social maior não é muito black metal, claro. Black metal me parece mais preocupado com a guerra do indivíduo contra a sociedade do que com sua subserviência a ela. Francamente, o black metal sempre me pareceu uma escolha estranha para os nazistas, além de um certo gosto adolescente por rebeldia e sede de sangue. Quinze anos atrás, pelo menos os nazistas escandinavos do black metal eram motivo de piada até entre os próprios nazistas, e isso faz sentido para mim.


O black metal sempre tentou ser “maligno” – seja lá o que isso signifique. Talvez não haja conceitos mais subjetivos no mundo do que “bem” e “mal”. A maioria das vezes, o bem é o que se alinha aos valores morais do indivíduo ou da comunidade, e o mal é tudo o que não se alinha.

Não sei se sou maligna. Depende de quem me rotula. Anarquistas sempre foram retratados como malignos por governos e capitalistas, mas nosso número de genocídios é bem menor que o de praticamente todas as outras ideologias políticas nos últimos 500 anos. Na verdade, não acho que anarquistas sejam tão malignos assim. Acho que a autoridade tem mais direito a essa palavra.


Pessoalmente, gosto de me deleitar com outro conceito semelhante: monstruosidade. Não consigo mais encontrar a citação, enterrada na vastidão da internet, mas uma vez li o post de uma outra mulher trans sobre metal. Pelo que me lembro, ela havia sido chamada de “poser” depois de criticar um cara branco cis por usar uma camiseta de banda nazista. Ela disse, e aqui parafraseio: “Sou uma mulher trans. Injeto urina concentrada de éguas para me tornar algo monstruoso para a sociedade. Sou mais metal do que você jamais será.”

Não sei se sou um monstro. Isso cabe à sociedade decidir.

Mas sei que ser um monstro é muito, muito metal.


O fascismo não é a única coisa que quero destruir, e o antifascismo não é a única razão pela qual quero ocupar espaço na cena do black metal.

Quero destruir o patriarcado também. Não quero destruir os homens – bom, não a maioria – mas quero mandar as forças da dominação masculina de volta para o abismo de onde saíram.

Não quero ir a um show e descobrir que o vocalista defende o holocausto de minorias étnicas. Também não quero ir a um show e descobrir que o vocalista é um estuprador sem remorso. Não quero ouvir insultos racistas. Também não quero ouvir um grupo de caras falando mal de “vadias” ou reclamando da “friendzone”. Não quero que um cara cis coloque a porra da mão na minha cintura ao passar na multidão. Não quero tocar para plateias só de homens, nem dividir o palco só com homens.

Estou lutando por espaço cultural como antifascista, mas também como mulher. Criei minha banda, Feminazgûl, em parte por isso.

Dei ao primeiro EP o nome The Age of Men Is Over justamente por isso. Eu ouvia black metal havia uns dez ou quinze anos. Um inverno deprimente, superando o fim de um namoro com uma garota que decidiu que era hétero demais para ficar com outra mulher, gravei vinte minutos de black metal no quarto. Só precisava de uma forma de extravasar a raiva feminista.

Nunca esperei a resposta que recebi.

Como garota trans, sempre tenho medo de ocupar espaço em círculos feministas. Medo de ser rejeitada por outras mulheres. Mas isso não aconteceu. Muito pelo contrário. Uma mulher repostou o EP dizendo que ia escutá-lo quando entrasse em trabalho de parto.


O que me pegou de surpresa, mas não deveria, foi o apoio esmagador que recebemos (hoje somos um duo) de homens cis. Muitos homens estão tão cansados quanto as mulheres de o black metal ser um clube de garotos. Homens estão percebendo que o patriarcado os empurra para caixas dolorosas e os isola de metade do mundo. Estamos vencendo a guerra cultural.

Claro que há um lado ruim em todos os avanços culturais. Tivemos conquistas enormes na última década em aceitação LGBTQIA+. Pelo que percebo, até como pessoa branca, há avanços na luta contra o racismo, com mais gente entendendo que supremacia branca e colonialismo não se resolvem com “tratar todos iguais”, como diziam nossos pais. Temos casamento gay e consciência de que “racismo reverso” é tão real quanto o Saci. Existe toda uma geração que não tem medo de criticar o capitalismo e se declarar socialista ou anarquista. Defendemos a autonomia de trabalhadoras do sexo. Pessoas trans estão saindo do armário em massa – e até ousando mijar em banheiros públicos ou ler para crianças.

Tudo isso apavorou a direita, que agora tenta um último ataque desesperado. A extrema direita sempre foi péssima em criar cultura, mas infelizmente é boa em tomar o poder político – e está fazendo isso, rápido, e estamos perdendo muita coisa. É uma tentativa desesperada, mas não significa derrota. Temos que continuar lutando.

A guerra cultural não é a única. Ideias estéticas e subculturas não são a única coisa que não podemos ceder aos fascistas.

Algumas lutas são bem mais físicas.

Eu só queria fazer música, escrever livros e viver minha vida queer aqui nos Apalaches. Mas não posso. O fascismo está crescendo politicamente, mesmo que a libertação esteja crescendo culturalmente. Então tenho que lutar. E também não posso só viver minha vida porque os nazistas locais estão me perseguindo. Mandam e-mails dizendo qual carro eu dirijo, onde costumo ir.

Os nazistas locais fazem muitas coisas, mas tocar black metal decente não é uma delas.

E me assustar também não é.

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