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As redes de extrema direita na América Latina: jornais digitais, bots e notícias falsas
Antifascismo

As redes de extrema direita na América Latina: jornais digitais, bots e notícias falsas

Uma rede conservadora que se originou no Brasil e se espalhou pela Argentina chegou ao México, atuando como uma arma política

Por , e

Via El País

Tempo de leitura: 9 minutos.

O Brasil foi o campo de testes para as novas armas digitais da extrema direita latino-americana. E o sucesso foi tão estrondoso que um deputado provocador e praticamente desconhecido chamado Jair Messias Bolsonaro tornou-se presidente em janeiro de 2019.

Quatro anos depois, os holofotes se voltaram para Javier Milei: um economista argentino barulhento, de cabelos encaracolados. O fenômeno da extrema direita agora cresce no Chile, liderado por Johannes Kaiser, até recentemente candidato presidencial. E, agora, a rede tenta ganhar terreno no México, onde ainda busca uma liderança.

Independentemente do país, a estratégia é sempre a mesma: exércitos de mercenários digitais difundem sua retórica fora da imprensa tradicional. No X, TikTok, Instagram e Facebook, bem como em programas de streaming e jornais digitais, conclamam à revolta e à desobediência civil (ou até mesmo a golpes de Estado) e organizam manifestações “espontâneas” para derrubar o establishment. Uma delas ocorreu no sábado, 15 de novembro, na Cidade do México, em protesto contra o governo da presidente Claudia Sheinbaum.

No México, a extrema direita teve pouco apoio popular e nenhuma presença institucional. Existem apenas dois grupos de ultradireita que aspiram se tornar partidos políticos antes das eleições de meio de mandato de 2027. Um deles é liderado pelo ator Eduardo Verástegui, que já teve uma boa relação com o presidente argentino. A aliança, porém, durou pouco: uma troca inesperada de insultos no X, em outubro, encerrou a parceria. Isso também levou ao cancelamento da Conservative Political Action Conference (CPAC), que seria realizada no México neste mês.

Sem representação eleitoral, a presença do movimento conservador mexicano está hoje concentrada nas redes sociais. Foi ali que surgiu a polêmica convocatória para uma manifestação — supostamente atribuída a membros da “Geração Z”. Embora apresentada como um movimento espontâneo semelhante aos que sacudiram o Nepal, Madagascar ou Marrocos, uma investigação da Infodemia — unidade governamental dedicada a analisar desinformação — afirma que se tratou, na verdade, de uma “estratégia digital coordenada”. O relatório aponta para influenciadores, figuras da oposição e contas ligadas à Atlas Network — uma organização ultranacionalista fundada no início dos anos 1980, com presença em mais de 100 países — como responsáveis pela campanha. Segundo o relatório, mais de 90 milhões de pesos mexicanos (cerca de US$ 5 milhões) foram gastos no último mês e meio para promover a marcha.

A investigação oficial também implica indiretamente Ricardo Salinas Pliego, dono da TV Azteca. Há duas semanas, a Suprema Corte mexicana decidiu contra ele após anos de litígio, ordenando que o empresário pague 50 bilhões de pesos (quase US$ 3 bilhões) em impostos atrasados. Esse revés intensificou o debate sobre o suposto papel de Salinas Pliego nas campanhas digitais que criticavam Claudia Sheinbaum quando ela era chefe de governo da Cidade do México (2018-2023).

A Infodemia rastreia as origens da mais recente campanha digital ao início de outubro, quando o Azteca Noticias publicou um relatório sobre protestos da Geração Z ao redor do mundo. Então, dezenas de contas surgiram nas redes sociais, com nomes como “generacionz_mx” ou “somosgeneracionzmx”, convocando uma marcha na capital mexicana em 15 de novembro. No TikTok, quase 200 contas promoveram o protesto, 50 delas criadas ou reativadas nesse período. No Facebook, mais de 350 grupos discutiram o tema, vários administrados do exterior.

O tom das mensagens mudou abruptamente na primeira metade de outubro. Depois, com o assassinato de um prefeito no estado de Michoacán, em 1º de novembro, a narrativa mudou novamente: surgiram pedidos de revogação do mandato da presidente, além de acusações de incapacidade do governo federal para conter a violência. A Infodemia sustenta que essa mudança de tom foi orquestrada.

O relatório aponta para a presença de bots da Atlas Network e menciona um cidadão argentino: Fernando Cerimedo. Até alguns meses atrás, ele comandava a campanha digital de Milei.

Cerimedo é uma figura conhecida no Cone Sul. Seu nome apareceu mais de 60 vezes na investigação policial sobre a trama golpista contra Luiz Inácio Lula da Silva, que levou à condenação de Bolsonaro em setembro. Cerimedo foi acusado de divulgar uma suposta “investigação” que questionava a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro, para deslegitimar a vitória do líder do PT. Em fevereiro de 2025, porém, a polícia o inocentou de envolvimento na trama golpista, embora tenha destacado que ele divulgou “conteúdos infundados”.

O movimento bolsonarista germinou nas redes sociais. Longe do radar da grande mídia, a retórica anti-establishment e anticorrupção de um deputado — conhecido apenas por suas provocações — seduziu milhões de brasileiros em 2018. A maioria votou no capitão reformado do Exército, unificada pelo cansaço com a política tradicional e um ódio visceral ao PT. Lula — presidente entre 2003 e 2011 — estava fora do cenário, preso por acusações de corrupção posteriormente anuladas.

O patriarca do clã Bolsonaro estava tão consciente do papel crucial da internet (especialmente das mensagens de WhatsApp) em sua vitória que, no dia da posse, seu filho Carlos — vereador e estrategista digital — acompanhou o pai no Rolls-Royce que o levou ao Palácio do Planalto. Após a vitória surpresa, eles construíram um movimento de extrema direita no Facebook, Twitter (hoje X), YouTube e TikTok. Isso devastou parte da direita tradicional e cooptou a maioria dos conservadores restantes.

O então presidente lançou uma transmissão semanal no Facebook onde — à moda do programa Aló Presidente, de Hugo Chávez (1999-2012) — convidava ministros para exaltar as realizações do governo. As milícias digitais criadas por Carlos Bolsonaro funcionavam como uma máquina bem azeitada. Ele montou uma rede com políticos influentes e veículos aliados para lançar ataques sincronizados contra rivais, silenciar críticos ou pautar debates nacionais. O ecossistema digital bolsonarista até criou sua própria versão da Netflix: um serviço de streaming que produzia filmes e documentários centrados nos temas fundamentais do movimento — Deus, pátria e família.

O mundo digital habitado pelos bolsonaristas mais radicais — alimentado por informações enviesadas ou falsas — foi terreno fértil para que milhares acreditassem que a eleição de 2022 havia sido roubada. Eles foram convencidos a acampar por dois meses diante de quartéis, exigindo intervenção militar. Depois, partiram para um ataque direto ao coração institucional da República, em Brasília. Centenas de apoiadores de base estão hoje cumprindo longas penas de prisão por participação na tentativa de golpe, enquanto Bolsonaro aguarda a definição de sua pena de 27 anos.

La Derecha Diario, o aríete ultra-direitista

Antes da queda de Bolsonaro, Cerimedo havia retornado a Buenos Aires, onde — desde 2012 — comanda o La Derecha Diario (“O Diário da Direita”). É um dos principais difusores digitais de ideias de extrema direita na América Latina e um grande propagador de desinformação contra tudo o que lembre progressismo. O site não tem grande tráfego, mas sua conta no X possui mais de meio milhão de seguidores dedicados.

Em junho de 2021, Cerimedo trouxe o espanhol Javier Negre para o projeto. O agitador havia identificado o potencial político de Milei ainda em Madrid. Negre decidiu se reinventar na América do Sul após uma carreira mal-sucedida na Espanha. A nova empresa foi batizada Madero Media Group S.R.L., começando com 100 mil pesos argentinos — pouco mais de US$ 1 mil na época.

Após anos de atividade frenética, Cerimedo se aposentou do La Derecha Diario (embora permaneça como sócio fundador) e rompeu com o governo Milei, insatisfeito com a estratégia de comunicação do presidente. Hoje, quem quiser falar com ele precisa viajar até La Paz, na Bolívia, onde atua como assessor de comunicação do recém-eleito presidente Rodrigo Paz.

Já Negre segue com suas provocações em Buenos Aires, após passagens pelos Estados Unidos e Israel (onde foi “mostrar a verdade” sobre a guerra em Gaza). Na Argentina, ganhou notoriedade por provocar jornalistas em coletivas do ex-porta-voz Manuel Adorni. Quem o conheceu nos primeiros meses na capital argentina o descreve como um “vendedor de óleo de cobra” e um “falastrão” que tentou, sem sucesso, comprar veículos de mídia para expandir sua influência.

A influência de Negre chegou ao México quando Salinas Pliego ofereceu financiar uma versão local do La Derecha Diario. Foi dentro desse ecossistema digital que ocorreu a manifestação de 15 de novembro. Muitos dos influenciadores mexicanos identificados pela Infodemia não tinham histórico político: eram criadores de conteúdo de maquiagem, videogames ou música, que de repente começaram a postar mensagens apoiando o protesto poucos dias antes.

Enquanto protestos da Geração Z já derrubaram governos em diversos países, no México essa participação online parece não ter força mobilizadora suficiente. Mesmo assim, a presidente Claudia Sheinbaum ordenou a instalação de grades metálicas ao redor do Palácio Nacional e de outros prédios históricos, enquanto as contas do movimento compartilhavam instruções para derrubá-las.

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