Via El País
Há 75 anos, os conflitos da Segunda Guerra Mundial deixavam mais uma vítima. Integrante do movimento de resistência à invasão nazista na Itália, Bruno Neri levou a pior ao se deparar com uma brigada inimiga nos montes apeninos. Mortes por tiroteios e bombardeios eram corriqueiras num país tomado pela guerra, mas aquele não se tratava de um soldado comum. Antes de pegar em armas, Neri ganhava a vida como atleta profissional de futebol, foi ídolo da Fiorentina e integrou a lendária seleção italiana da década de 1930. Por um gesto de coragem, o jogador que morreu no campo de batalha ficaria marcado como símbolo do antifascismo.
Bruno Neri nasceu em Faença, cidade da Emília-Romanha famosa pela fabricação de cerâmica. No futebol, ele logo despontou como um “jogador operário”, que, com sua raça, se sacrificava pelo time ocupando mais de uma faixa do gramado. Também tinha boa técnica, virtude que o levou a ser descolado da defesa para o meio-campo. “Antes de receber o passe, é preciso saber o que fazer com a bola”, dizia. Foi revelado no clube da terra natal, formou-se no Instituto Agrário de Imola e passou pelo Livorno até receber a grande oportunidade de sua carreira. Em 1929, a recém-fundada Fiorentina desembolsou o equivalente a cinco vezes o salário anual do trabalhador médio italiano para contratá-lo.
Naquela época, o profissionalismo começava a se estabelecer no futebol. Já era possível viver do esporte, mas Bruno Neri nunca se encaixou no estereótipo de jogador. Além de ter estudado, nutria o gosto pela literatura e frequentava ambientes pouco apreciados por boleiros, como o Caffè Giubbe Rosse, tradicional ponto de encontro de intelectuais, escritores e artistas no centro de Florença. De perfil contestador, desenvolveu uma postura crítica – ainda que discreta – ao cerceamento das liberdades individuais durante o governo de Benito Mussolini, o primeiro-ministro que implementou o regime fascista na Itália.
Em 1931, a Fiorentina inaugurou seu estádio, batizado de Giovanni Berta em homenagem a um mártir ligado ao fascismo, assassinado por militantes comunistas na década anterior. Para a abertura do novo campo instalado no berço do Renascimento, a Viola marcou amistoso contra o Admira Viena, da Áustria. Como de praxe nos rituais de jogos sob o comando fascista, os jogadores se perfilaram no grande círculo e esticaram o braço direito para o alto com a mão espalmada. Apenas um deles, permanecendo com os braços colados ao tronco, teria se recusado a fazer a saudação romana: Bruno Neri.
Segundo sua biografia Il calciatore partigiano, escrita em italiano por Massimo Novelli, o jogador já demonstrava tendências antifascistas desde o início da carreira, mas nunca havia tornado pública a insatisfação com o regime de Mussolini. A obra não menciona o episódio na inauguração do estádio, pois o autor só tomaria conhecimento da foto que registra o suposto ato de rebeldia de Bruno Neri após a publicação do livro, em 2002. Gesto no mínimo transgressor para um período em que a adesão ao fascismo na Itália, ainda que por coação do Estado, era quase unanimidade. “Na década de 30, a ideologia fascista se aliou ao nazismo e atingiu seu auge de consenso. Praticamente inexistia oposição ao movimento no país. Não era fácil se apresentar como um inimigo do fascismo”, explica o italiano Fabio Gentile, professor de ciências políticas na Universidade Federal do Ceará. “É bem provável que o status de ídolo de uma torcida tenha servido como proteção a ele. Mesmo assim, ignorar a saudação romana se trata de uma atitude muito corajosa para aquele tempo.”
Neri havia acabado de ser campeão da segunda divisão italiana. Como um dos atletas que mais jogou na campanha, conduziu a Fiorentina à Série A pela primeira vez. Porém, só foi convocado para a seleção em 1936, quando já defendia o Lucchese. Disputou apenas três jogos pela Azzurra, que, com craques do naipe de Piola e Giuseppe Meazza, se consagrava como a melhor equipe do mundo. Enquanto a Itália conquistou duas Copas do Mundo e uma Olimpíada, feitos utilizados pelo regime fascista como propaganda nacionalista, o sentimento de inconformidade aflorava ainda mais em Bruno Neri.
Comandado por vários técnicos húngaros desde sua estreia no Club Atlético Faenza, ele se indigna com a perseguição do governo aos estrangeiros. Viu dois treinadores do time de sua cidade serem demitidos depois da intervenção fascista na administração dos clubes. No Torino, trabalhou novamente com Ernó Erbstein, que o havia treinado no Lucchese. Em 1938, o fascismo impõe as leis raciais, que forçaram o técnico de origem judaica a deixar o país. Pouco tempo depois, Bruno Neri, acometido por uma série de lesões, pendura as chuteiras aos 30 anos. Nesse mesmo período, por intermédio de um primo, se aproxima do Comitê de Libertação Nacional (CLN), embrião da organização antifascista que originaria a Resistência italiana conhecida como os partigiani.
A essa altura, a Segunda Guerra Mundial já havia eclodido, Mussolini acabou deposto pela monarquia e a Itália lutava para barrar a ocupação de seu território pelo exército de Adolf Hitler. Foi quando Bruno Neri se incorporou oficialmente à luta armada popular. “A composição social da Resistência era muito heterogênea”, afirma Fabio Gentile. “Reunia intelectuais, professores, mulheres, classe trabalhadora e gente de orientações políticas opostas, dos socialistas aos monarquistas. Com a crise do regime em meio à guerra, a população começou a enxergar que o fascismo tinha levado a Itália ao fracasso.”
Movido pela revolta represada por quase duas décadas contra o domínio fascista, Bruno Neri voltou a Faença no início dos anos 40 e retomou as atividades como jogador no time que o revelara. Com o pseudônimo de “Berni”, aproveitava seu prestígio de atleta, acima de qualquer suspeita, para organizar reuniões secretas de militantes da Resistência. Seguiu jogando até poucas semanas antes de sua última missão como guerrilheiro. Integrante do batalhão de Ravena, tinha como principal atribuição combater a Linha Gótica, uma poderosa frente de defesa fincada pelos nazifascistas no Norte da Itália, que retardava o avanço das tropas aliadas. Neri e seu companheiro de batalhão, Vittorio Bellenghi, se deslocavam pelos Apeninos em busca de suprimentos que haviam sido lançados pelas forças aéreas dos Aliados quando foram surpreendidos por um grupo de 15 soldados alemães. Encurralados, ainda resistiram por alguns minutos à artilharia pesada dos nazistas.
Após o fim da guerra e a queda definitiva do fascismo na Itália, o estádio da Fiorentina, onde o jogador-combatente viveu seu ponto alto como atleta, foi rebatizado para retirar a reverência ao notório militante fascista. Em sua cidade, o estádio do Faenza passou a se chamar Bruno Neri, eternizado em uma lápide na antiga casa que serviu de abrigo para vários líderes da Resistência: “Comandante partisano morto em combate no dia 10 de julho de 1944. Depois de se destacar como atleta de primeiro nível, revelou magníficas virtudes de combatente na ação clandestina. Um grande exemplo para as futuras gerações”.