Sociedades inclusivas: uma ameaça à extrema direita?
A ascensão das ideologias de extrema direita e a guerra contra a diversidade nos Estados Unidos
“Não poderia haver um exemplo mais evidente de um movimento social e político fascista prestes a chegar ao poder.”
(Jason Stanley, professor de ciência política e filosofia na Universidade de Yale)
Poucas horas após sua posse como o 47º Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, confortavelmente instalado na Casa Branca, deu um passo decisivo na desconstrução de décadas de políticas de direitos humanos. Ordem executiva após ordem executiva, a administração Trump retirou direitos básicos de milhões de americanos, abrangendo desde direitos sexuais e reprodutivos e acesso à educação até proteção contra abusos sistêmicos. Embora essa postura não surpreenda, considerando sua campanha baseada no medo, alguns especialistas vão além: mais do que um movimento de extrema direita, o Trumpismo seria um movimento fascista.
Mas o que isso significa? O fascismo tornou-se uma palavra-chave, usada para descrever uma ampla gama de regimes e ideologias políticas. Nascido na Itália do pós-guerra nos anos 1920, o fascismo baseia-se em nacionalismo extremo, conceito de pureza racial e hierarquia social rígida. Assim como outros regimes totalitários, facções fascistas acreditam na supremacia da nação sobre o indivíduo, na reorganização da sociedade com base em um código moral e na repressão de opositores políticos.
Em sua essência, o fascismo depende de uma “nação” imaginada que subsume os indivíduos como partes de um todo maior, negando sua agência e singularidade. Não é surpresa que a administração Trump faça tudo ao seu alcance para destruir direitos conquistados por minorias, que enfatizam identidade pessoal e diversidade. O vocabulário usado em comunicados oficiais reforça esse argumento, descrevendo iniciativas de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) como “discriminações ilegais e imorais”.
Desde sua reeleição, Donald Trump intensificou o que só pode ser descrito como uma guerra contra a diversidade. Retrocessos em iniciativas de DEI, cortes em programas sociais e humanitários e discursos discriminatórios nos mais altos escalões políticos são alguns dos muitos sintomas de um retrocesso claro nos direitos civis adquiridos. Essa postura radical teve impactos amplos no setor público, onde milhares de chamadas “contratações pela diversidade” perderam seus empregos, mas também no setor privado, com multinacionais como Disney, Coca-Cola, Meta e Deloitte revisando suas políticas de DEI para proteger contratos e subsídios do governo americano.
É inegável que Donald Trump exerceu enorme influência na política americana, polarizando e radicalizando debates sobre imigração, direitos LGBTQA+ e saúde. Comentários outrora considerados escandalosos agora são tolerados sob o pretexto da liberdade de expressão.
A democracia americana está caminhando para o fascismo?
Especialistas podem divergir, mas é possível argumentar que a administração atual adota cada vez mais características atribuídas a regimes fascistas. Com base no trabalho de cientistas políticos como Cynthia Miller-Idriss e Jason Stanley, pode-se sustentar que a postura do governo sobre DEI reflete as premissas de um projeto fascista, caracterizado por dois elementos-chave: retorno a valores patriarcais e construção de um estado étnico.
Reafirmação de papéis de gênero rígidos
A política de gênero raramente andou de mãos dadas com o governo republicano. Se a reeleição de um condenado por estupro provou algo, é que os direitos das mulheres não seriam reforçados sob a atual administração. Questões como saúde reprodutiva, inclusão LGBTQ+ e equidade de gênero raramente são defendidas por representantes republicanos, que as consideram desperdício de tempo e dinheiro público. O projeto social de Donald Trump, patriarcal por natureza, terá graves repercussões nos direitos civis nos Estados Unidos.
Além dos comentários e comportamentos sexistas divulgados na mídia, os republicanos buscam derrubar legislações-chave em direitos civis. Desde a revogação do julgamento Roe vs. Wade até a proibição de apresentações drag, a política americana caminha para uma definição binária de gênero, atrelada a papéis sociais definidos: homens como provedores e mulheres como cuidadoras. Nesse contexto, a retomada de discursos pronatalistas é um estudo de caso interessante.
A nomeação de figuras pronatalistas, como Malcolm e Simones, contribui para reforçar essa narrativa. Suas iniciativas foram bem recebidas pelo governo atual, que propôs medidas como “bônus bebê”, concedendo subsídio de $5.000 por filho nascido de americanos, ou a doação de uma “medalha da maternidade”, iniciativa popularizada nos anos 1930 pelo regime nazista. A auto-intitulação de Trump como “presidente da fertilização” confirma a natureza patriarcal de sua visão social. Propostas como essas fomentam a procriação compulsória, restringindo o acesso ao aborto e suprimindo programas de saúde sexual e reprodutiva.
Essa divisão de papéis e a rigidez atribuída a homens e mulheres impede a expressão de outras identidades de gênero e sexualidades. Sob o pretexto de “valores familiares”, Trump lançou uma caça às bruxas à comunidade LGBTQA+, com foco especial em pessoas trans. Em poucos meses, o governo proibiu cidadãos trans de ingressar nas Forças Armadas, interrompeu procedimentos de transição de gênero e revisou a política de passaportes para invalidar identidades fora da definição binária de gênero.
Ativistas como Hunter Schafer relataram nas redes sociais as dificuldades enfrentadas para obter passaportes que refletissem sua identidade escolhida. Embora essas medidas tenham sido consideradas inconstitucionais por diversos juízes federais, a mensagem é clara: a adesão a valores patriarcais tornou-se pré-requisito para a cidadania americana.
Fascismo na esfera privada
A disseminação de discursos fascistas também atinge a esfera privada. Em seu livro “Hate in the Homeland: The New Global Far-Right”, Cynthia Miller-Idriss analisa os processos de radicalização que alimentam movimentos de extrema direita nos EUA. Ela mostra como esportes de combate e fóruns online se tornaram canais-chave para líderes de extrema direita espalharem ódio e recrutarem seguidores.
Quem está constantemente online pode notar influenciadores promovendo valores tradicionais, criticando a “decadência” da era moderna e a deriva de normas sociais “excessivamente inclusivas”. De incels (celibatários involuntários) a tradwives (esposas tradicionais), redes sociais estão cheias de exemplos de indivíduos privados incentivando o retorno a uma era anterior, com papéis de gênero rígidos. Figuras midiáticas como Andrew Tate e os irmãos Paul, mesmo enfrentando acusações criminais, ainda são reverenciados por jovens isolados e facilmente influenciáveis.
Esses influenciadores reproduzem códigos da agenda fascista, como a saudação nazista, presente em vídeos de Tate desde que Elon Musk fez uma na posse de Trump. O objetivo é estabelecer uma hierarquia social baseada em virtudes patriarcais como força, privilégio e dominação sobre mulheres, separando os americanos em “dentro”, que aderem à retórica de extrema direita, e “fora”, excluídos por gênero, sexualidade ou origem. A mesma lógica se aplica a fatores como raça.
Projeto de estado étnico
Como vimos, nem todos podem fazer parte da “América ideal” de Trump. Em seu ensaio, Miller-Idriss detalha como ideologias de extrema direita defendem o estabelecimento de um estado étnico, restaurando uma pátria branca ou, em outras palavras, um país definido por critérios raciais e étnicos. Esse discurso justifica ações violentas e expropriativas, como “re-imigração de minorias étnicas, remoção forçada de lares, apreensão de propriedades privadas e separação de indivíduos de terras ocupadas por gerações”.
Exemplos recentes incluem o uso de agências federais, como o ICE, para atacar famílias de imigrantes. Vídeos de escolas e casas particulares invadidas por agentes do ICE circulam facilmente na internet, provando que o projeto de Trump não é pró-família nem visa construir uma América coesa e unida.
O vocabulário usado por Trump ao se referir a imigrantes comprova isso. Desde chamar imigrantes mexicanos de “estupradores” em sua primeira campanha em 2018 até declarações racistas contra eleitores negros, suas falas legitimam comentários e comportamentos racistas na esfera pública.
Além disso, a brutalidade e arbitrariedade do ICE é preocupante. A criação de linhas de denúncia de imigrantes “ilegais” e a prisão arbitrária de milhares de pessoas lembram os métodos da Gestapo nazista. Alguns historiadores afirmam que o ICE pode estar se tornando uma ferramenta de perseguição política, especialmente com o aumento de $175 bilhões nos próximos dez anos, ampliando seu poder de ação.
A política de imigração de Trump se conecta à teoria da “grande substituição”, uma hipótese conspiratória de extrema direita sobre a substituição planejada da população branca por não brancos. Apesar de refutada por especialistas, continua servindo como justificativa para medidas discriminatórias e, muitas vezes, violentas.
Milícias armadas autoproclamadas participando de operações na fronteira com o México evidenciam a influência dessas teorias. Por meio do processo de “othering”, imigrantes são considerados inferiores e, portanto, podem ser perseguidos “legitimamente”. Vídeos de “deportação ASMR” publicados pela Casa Branca mostram como ações institucionais dividem o povo americano e demonstram a insensibilidade da administração Trump ao sofrimento humano básico.
Efeito dominó: ameaça à democracia americana
Historicamente, direitos de mulheres, LGBTQIA+ e pessoas negras são relativamente recentes. A tentativa deliberada de Trump de retornar a um status quo anterior preocupa legisladores e cidadãos, cujos direitos também estão ameaçados. Cada medida discriminatória aplicada pelo governo Trump abala os alicerces da democracia americana.
O programa da administração também afetou a acadêmia, com a exclusão da história negra e a proibição de clássicos literários em escolas públicas por “imoralidade” ou “excessiva conscientização social”. A reversão de direitos constitucionais, como o direito ao aborto, aumentou a mortalidade materna e prejudicou programas de saúde essenciais.
Ao desequilibrar os poderes, tornar a lealdade política um pré-requisito e ameaçar sobrepor a Constituição para garantir um terceiro mandato, Trump abala continuamente a base da democracia americana.
No mundo todo, partidos de extrema direita são tratados como forças políticas legítimas, mas não deveriam ser. Seus programas são, por natureza, destrutivos, afetando comunidades marginalizadas e a própria democracia. Combater essas narrativas é essencial para garantir uma sociedade plural, inclusiva e unida, e a sociedade civil tem um papel fundamental em denunciar e combater abusos institucionais de poder. O ativismo é mais necessário do que nunca para proteger a democracia e construir uma sociedade mais justa, inclusiva e equitativa.
Referências
1 Council on Foreign Relations. (n.d.). What is fascism?
2 The White House. (2025, January 20). Ending Radical and Wasteful Government DEI Programs and Preferencing.
3 Olson, A., Miller, Z. (2025, January 22). The Trump administration directs all federal diversity, equity, and inclusion staff be put on leave. The Associated Press.
4 Kleeman, J. (2024, May 25). America’s premier pronatalists on having ‘tons of kids’ to save the world: ‘There are going to be countries of old people starving to death.’ The Guardian.
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6 Miller-Idriss, C. (2020). Hate in the Homeland: The New Global Far Right. P. 40.
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8 Morgenbesser, L. (2025, April 28). How ICE is becoming a secret police force under the Trump administration. The Conversation.
9 Mangan, D. (2025, February 18). The White House posts video of immigrants in shackles, calling deportation footage ‘ASMR.‘ CNBC.
10 Sager, R. (2025, March 28). Her Daughter Died After a Fatal Delay in Reproductive Care. Now, She’s Fighting for Justice. Capital B News.
