Por Projeto Brasil Real é um País que Luta
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Foto: Wikimedia Commons
Na virada do século XIX para o XX, o Brasil passava por transformações urbanísticas e sociais. A abolição da escravatura em 1888, combinada com políticas excludentes, como a Lei de Terras de 1850 que impedia o acesso à terra, concentrando a propriedade rural nas mãos de grandes latifundiários, a falta de condições de sustento gerada pelo desemprego e a falta de acesso à educação, forçaram um processo de migração para as áreas urbanas onde essa população se concentrava em condições precárias, no que ficaram conhecidos como cortiços, abandonados à propria sorte em condições degradantes. O processo de urbanização se deu marcado por essas profundas desigualdades ignoradas pelo poder público. A falta de condições mínimas de sobrevivência digna desencadearam uma série de problemas de saúde pública. A cidade do Rio de Janeiro foi palco de uma das revoltas desencadeadas nesse contexto de profunda desigualdade e contra as políticas higienistas promovidas pelo Estado.
Com a proclamação da república em 1889, o Estado brasileiro passou a adotar políticas de modernização e desenvolvimento urbano, inspiradas em teorias higienistas europeias. Sob o governo do presidente Rodrigues Alves, a política de reformas “modernizadoras”, já projetadas desde o século XIX, foram levadas adiante pela prefeitura do Rio de Janeiro. Com a justificativa de promover a saúde pública e modernizar a cidade, foram implementadas políticas arbitrárias de despejo e destruição dos cortiços para “limpar” a área central da cidade e garantir a construção de avenidas e prédios em arquitetura moderna nos padrões europeus, obrigando os moradores despejados a ocupar os subúrbios e morros. Os despejos aconteceram de maneira violenta, sem nenhuma política pública voltada a garantir moradia e condições dignas para essa população. A lógica que orientava as políticas de urbanização aplicadas no Rio de Janeiro era a de exclusão e expulsão do espaço da cidade.
Somada à política de destruição dos cortiços e limpeza da cidade, foram aplicadas medidas sanitárias contra as epidemias que atingiam a cidade. Segundo dados do Instituto Oswaldo Cruz, em 1904, ano da revolta, a cidade atingiu 3500 mortos vítimas da varíola e o número de internados no Hospital São Sebastião chegava a 1800. Além da varíola, outras doenças como a tuberculose e a febre amarela assolavam a cidade, conhecida no exterior como “túmulo dos estrangeiros”. As epidemias eram facilitadas em decorrência das péssimas condições de vida e moradia, sem garantias mínimas de saneamento básico. A resposta do Estado, marcada pela violência e repressão, gerava revolta na população que via sua dignidade sendo sistematicamente violada. A obrigatoriedade da vacinação contra a varíola gerou resistência. Dado o contexto social de desumanização da população pobre, de arbitrariedade do Estado, a política de imunização foi vista como uma tentativa do governo de interferir violentamente na autonomia individual. Os boatos correntes, como o de que a vacinação animalizaria a população, são expressão clara do sentimento geral de resistência contra a violência e o autoritarismo estatal.
A revolta eclodiu no dia 10 novembro de 1904 e foi cenário de intensos conflitos nas ruas do Rio de Janeiro. Os protestos eram marcados não apenas pelo sentimento de oposição à vacinação obrigatória, mas, sobretudo, pela revolta daqueles que viam na campanha sanitária uma forma de opressão e controle social. A repressão violenta por parte das autoridades deixou um saldo de 945 presos, 110 feridos e 30 mortos, segundo o Centro Cultural do Ministério da Saúde, aumentando ainda mais a tensão entre o governo e a população. Além disso, a revolta da vacina também escancarou as profundas desigualdades sociais e raciais estruturais da sociedade. As políticas higienistas estigmatizavam as comunidades negras e pobres, reforçando e ampliando as disparidades sociais já existentes.
Ainda hoje, o higienismo é marca das administrações das grandes cidades, que, diante da precariedade causada pelo desemprego, pela falta de moradia, pela fome e a miséria, governam com políticas segregadoras e de expulsão dos marginalizados dos espaços públicos. É marca de um sistema que tenta esconder as desigualdades causadas pelas exploração e a opressão a decisão de eliminar aqueles que se encontram às margens da sociedade, ao mesmo tempo em que estão integrados nela como resultado de suas próprias contradições. A polícia que mata a juventude negra nas periferias, a violência contra a população em situação de rua, os despejos e descoupações e as tentativas de coibir a assistência social, como a proposta de multar a doação de alimentos nas ruas pautada recentemente pela extrema-direita na Câmara de Vereadores de São Paulo, são exemplos vivos da continuidade de uma política que orienta a organização dos centros urbanos.
É fundamental, entretanto, reafirmar a coragem da resistência popular frente ao autoritarismo e a arbitrariedade do Estado. Hoje, assim como em todo a nossa história enquanto país, o povo organizado segue resistindo e lutando por outra lógica de sociedade. Os movimentos sociais por moradia, a luta da negritude contra a violência policial, as lutas pelo acesso e direito à sociedade, como os movimentos em defesa do passe livre, seguem sendo protagonistas das lutas do presente em disputa por outro futuro.
Saiba Mais
A Revolta contra a vacina: A vulgarização científica na grande imprensa no ano de 1904 (Aline Silva Salgado / Fiocruz)
Cinco dias de fúria: Revolta da Vacina envolveu muito mais do que insatisfação com a vacinação (Luana Dandara / Fiocruz)
Uma revolta popular contra a vacinação (Mayla Yara Porto / SBPC)
A Revolta da Vacina (Marco Antônio dos Santos Martins / UFRGS)
Ensino de História e as várias teses sobre a Revolta da Vacina (Alline Cristina Basso / UNIMEP)
A obrigatoriedade da vacina contra a varíola em 1904: Uma ameaça à liberdade individual (Alex da Silva Sousa / UNB)
A revolta da vacina: autoritarismo político na produção do espaço moderno (David Williams Barros Vieira / UFRRJ)